Observatório Psicanalítico – OP  340/2022

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Triste… Brasil  – 200 anos depois*

Dora Tognolli (SBPSP)

Por que inicio com “triste?” Falar do Brasil, país do samba, da alegria, da malandragem, das lindas praias e corpos quase nus, da irreverência, da dita “democracia racial”? Triste parece ser o afeto que melhor traduz a aproximação de um viajante como eu, do país misterioso, difícil e atraente que é o meu! Um oxímoro necessário: triste-alegre, alegria – tristeza…

Aponto um outro sentido para triste: utilizado para crianças levadas, de difícil domesticação, que desafiam as pedagogias e normas e dão muito trabalho. Triste, aqui, como sinônimo de teimosia, resistência. Podemos ficar com os dois sentidos de triste: o afeto da melancolia, que carrega as perdas silenciadas de histórias antigas de nossa constituição, ao lado da “energia que constrói coisas belas” (definição poética da maior cidade brasileira, São Paulo, cantada por Caetano Veloso).

Aprendemos com Freud a importância do romance familiar: muitas vezes, é mais cômodo conviver com uma falsa verdade do que perceber a realidade tal qual ela se apresenta; também sabemos que os mitos não precisam ser tratados como mentiras e cancelados: até que ponto mito vira história e história vira mito? Como lidar com esse caleidoscópio, que vive desafiando nossas certezas?

Sigo acompanhada de historiadores, que me ensinam a revisitar as histórias mal contadas, fragmentadas, omitidas; as fotos que ilustram nossos manuais, mas nas quais não penetramos; e os escritores e artistas, em especial da área musical, talentos nossos reconhecidos nos diversos cantos do mundo: Machado de Assis, Mario de Andrade, Tom Jobim, Villa-Lobos, Caetano Veloso e tantos outros…

Lévi-Strauss, que esteve no Brasil na década de 1930, e participou da implantação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas na USP, junto a outros professores franceses, em seu livro Tristes Trópicos, fruto de suas passagens por São Paulo e da convivência com a etnia dos Nambiquara, do Centro- Oeste brasileiro, traz algumas notícias de nós, que talvez só um visitante estrangeiro consiga vislumbrar.  O adjetivo “triste”, ao lado de trópicos, de partida abala o mito edênico de uma terra de prazeres, liberdade, muita água, vegetação exuberante, corpos ardentes, que animou o gozo dos primeiros portugueses que aqui desembarcaram. 

Quem sabe, o autor nos convide a rever certa dose de mal-estar que pressentiu aqui, a partir de seu olhar interrogante e profundo, cético diante de cartografias lineares e mitos bem construídos?

Outras versões da história chegam perturbadoras, abalando o fio lógico que sustenta nossa ideia de Brasil, aprendido e repassado durante os anos escolares.  Para começo de conversa, cito duas:

• 1808 marcou a história da Nação: D. João VI desembarca no Rio de Janeiro, instalando a corte por aqui e governando o império a partir da colônia. Recebe, como presente, a melhor casa da cidade, a Quinta da Boa Vista, de um poderoso traficante de escravos local, que passa a ser “amigo do rei”, e usufruir de privilégios. Recordo uma máxima maliciosa, conhecida por nós: “aos amigos, tudo; aos inimigos a lei”,  que ainda dá o que falar;

• Após a Independência do Brasil, em 1822, além da redação de uma  nova Constituição, era preciso inventar uma nova história para essa jovem nação: para tanto, abriu-se um concurso, em 1844, que tinha como desafio a  proposta de criar essa  história, por decreto, que seria então a história oficial, ou nosso mito de origem. O vencedor desse concurso foi Von Martius: naturalista  germânico,  propõe a tese de que o Brasil se definia por uma mistura de povos e raças, e, para tanto utiliza-se da metáfora de um “caudaloso rio, que representa a herança portuguesa, que absorve os pequenos afluentes das raças índia e etiópica (negra)”, o que resultaria num país de mestiçagem harmônica. A metáfora fluvial indicava que o verdadeiro rio era o branco –  completo, volumoso, central, e os demais, o negro e o indígena, seriam misturados, branqueados ou apagados. Funda-se aqui a história brasileira, que garante o lugar do europeu/branco no centro, e aposta no apagamento dos povos originários e do grande contingente de negros que o Brasil recebeu como escravos. Origem da dita democracia racial aqui reinante, levada, no final dos anos 1940, para a ONU, e que comprovava a inexistência da discriminação racial e ética no Brasil.

Acompanhando esse fio narrativo, que aqui escolho, diante de tantos outros possíveis,  pode-se conjecturar que a história de Von Martius, do século XIX, transforma-se num mito nacional, trata de um certo Brasil que Gilberto Freyre também atualiza, e será posto em questão por outros cientistas, como Florestan Fernandes, que questiona a mestiçagem harmônica, hoje entendida como ideologia de branqueamento,  que, ao contrário de harmonia, carrega extrema violência e perversidade.

Diversos cientistas políticos se perguntam: como o Brasil manteve sua unidade, sua grande extensão territorial, com tantas diferenças, revoltas, confrontos e desgovernos? Há teorias que falam de aspectos que mais nos envergonham e entristecem, do que orgulham: mandonismo, patrimonialismo, corrupção, desigualdade social, violência, racismo, intolerância.  

Também  deve ser mencionada a relação dos primeiros colonizadores que aqui chegaram: um certo deslumbramento com as matas, os litorais, onde o interior ficou intacto, misterioso e secreto. Como se os portugueses se dessem conta dos tesouros que aqui existiam, e que ao invés de cuidar preferiram esconder. 

Um grande vazio … repleto de mistérios e segredos. E que foi tocado a partir do interesse de outros povos por nossas riquezas, como os holandeses.

No texto de nosso  hino nacional, algumas frases  merecem  reflexão: Gigante pela própria natureza… Deitado eternamente em berço esplêndido… As lembranças encobridoras que essa récita propõe, carregam um misto de estranhamento e bizarrice… linguagem de mito, que não abre o tempo e  faz pensar que somos o eterno país do futuro, que não chega.

Até hoje existe a ideia de que a Amazônia é nossa, que é desejada por todos, e precisa ser protegida. Porém, em governos como o atual, o ímpeto explorador, perverso e destrutivo permanece: vamos gozar/destruir, nós, por aqui. Bem, mais do que dar respostas, que cabem  aos historiadores e cientistas políticos, nos interessa elucidar os restos que permaneceram e que propõem muito trabalho e ação coletiva.

E como nos encontramos, tantos anos depois? Talvez convidados a fazer uso da flecha do tempo, que gira de forma intempestiva, e põe em jogo fragmentos perdidos da história que pedem passagem. Continuamos desiguais e injustos com nossos cidadãos: “O Brasil  não é  país pobre: é  país de pobres…” – frase proferida por Lima Barreto, na primeira década do século XX, ainda continua vigente. (Lima Barreto morreu em 1922: de tristeza, de decepção e de racismo…).

Faço aqui uma referência a um escritor polêmico, Nelson Rodrigues, autor de  uma frase que se tornou popular: “O brasileiro tem complexo de vira-latas”. Essa  frase foi  proferida diante da derrota do Brasil (país do futebol), para o Uruguai, em 1950, em pleno Maracanã. Nelson Rodrigues toca na inferioridade que o brasileiro tem diante do mundo, como se fosse um “narciso às avessas”. Mario de Andrade também havia falado no “complexo de Nabuco”, referindo-se ao brasileiro da elite que, diante dos nossos rios poluídos e mal-tratados, sente saudade do cheiro do Sena…

Hoje o vira-latas é quase um pedigree: cão forte, resultante de cruzamento de raças não identificadas, resistente, com seu charme, desejado pelos amantes de pets. E nós, brasileiros, vira-latas pós- modernos? Quiçá…

Temos, em nossa Instituição , uma figura importante: Virginia Bicudo –  mulher, negra, não médica, que hoje dá nome à Comissão que fundamos, que prepara ações afirmativas no Instituto da SBPSP em São Paulo. Virginia teve grande destaque na Instituição,  ficando à frente do Instituto de formação por 14 anos, participando da fundação da Sociedade de Brasília. Sua primeira  formação foi em Sociologia, onde produziu  uma tese intitulada “Atitudes raciais de pretos e mulatos na cidade de Sao Paulo”, baseada numa pesquisa de campo na qual se propõe a escutar as dores desses brasileiros. Porém, ao longo dos anos, passamos a pensar em Virginia como uma psicanalista memorável, que deixou sua marca na nossa Instituição e  conviveu com Melanie Klein em Londres.

Numa entrevista tardia de Virginia, ela conta que seu traço racial era motivo de chacota na escola fundamental: “sofri muito quando era chamada de “negrinha…”.

Revisitando a história, os relatos, os baús da memória, podemos nos perguntar se nossa escuta pode incluir esse sofrimento que Virginia e alguns pacientes trazem e que  dizem respeito a  todos nós e a um País que tem dificuldades em encarar esses aspectos de sua formação, marcados por violência, e que a dita cordialidade brasileira teima em esconder e denegar. Um presente cheio de passado onde vivemos assombrados.

E agora, próximos de eleições que nos inquietam, nos perguntamos sobre a fragilidade da democracia brasileira: cabe a provocação, democracia para quem? Cercados de ideologias que hoje ocupam o poder, e querem permanecer, onde alguns são vistos como mais humanos que outros, mais homens de bem que outros, onde frases recentes nos dizem direitos humanos para humanos direitos?

Que tal pensarmos também no triste Brasil, que resiste, teimoso, como assistimos em Salvador, Estado da Bahia, onde as rodas de capoeira, os terreiros de Candomblé, nos interrogam? Que passemos a vê-los como rios importantes e não meros afluentes, que contam histórias de todos nós… e sobre nós…

* Texto editado do artigo de mesmo título apresentado no Congresso da Fepal: Mesa do Observatório Psicanalitico “Como estamos: 200 anos depois”, que contou com a presença de psicanalistas da América Latina.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Foto: Memorial da América Latina (São Paulo)

Categoria: Política e sociedade 

Palavras-chave: Triste, Brasil, Democracia racial, Resistência, Virgínia Bicudo.

Colega, click no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página no Facebook:

https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid05biRrocpRc7NaRsUp7CqmmuwsD4sNe84o4i5PyCm4dptVsBthikxWKGpMY6ZU3NDl&id=100079222464939

Tags: Brasil | Democracia racial | Resistência | Triste | Virgínia Bicudo
Share This