Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Pacto brutal para o assassinato das mulheres brasileiras
Gabriela Seben (SBPdePA)
Eu tinha oito anos quando Daniella Perez foi assassinada. Lembro de ter ficado consternada com as imagens que estampavam as capas de jornais e revistas da época, escancarando o corpo mutilado pelas 18 estocadas que a jovem atriz recebeu no peito e no pescoço, no dia 28 de dezembro de 1992, em um matagal no Rio de Janeiro. Foi difícil para uma criança da minha idade ver aquelas imagens tão cruéis expostas sem censura, algo muito comum nos anos 90. Um verdadeiro culto à morte.
Mais difícil ainda era tentar assimilar alguma compreensão sobre a maldade humana. Talvez eu também não tivesse ainda tanto discernimento sobre quem era a atriz e a personagem Yasmin da novela. E parece que por muito tempo, aos olhos do público, ambas ficaram mescladas, confundidas, Daniella em Yasmin.
A talentosa atriz de apenas 22 anos despontava no país como a protagonista da novela do horário nobre, escrita por sua mãe. Para mim, uma criança que nutria certa admiração por Daniella Perez e que pouco entendia da irracionalidade do mundo, aquilo era extremamente chocante, tanto que marcou a minha geração. A brutalidade deste crime produziu no país um forte sensacionalismo, até mesmo porque os envolvidos eram pessoas da mídia, e as novelas eram produtos que representavam parte importante do cotidiano das famílias brasileiras.
Passados 30 anos do crime, assisti à série documental Pacto Brutal: o assassinato de Daniella Perez, dirigida por Tatiana Issa e Guto Barra, que conta a versão de Glória Perez, novelista e mãe de Daniella. Uma tentativa, segundo ela, de devolver dignidade à filha, que mesmo após a morte seguiu sendo assassinada pela mídia e pelas contraditórias declarações de seus algozes. Glória conta, por exemplo, que precisou transferir o corpo de Daniella algumas vezes, após inúmeras tentativas de violação de seu túmulo. Nem mesmo mortas as mulheres têm direito à preservação de seus próprios corpos.
Esta sequência de fatos traumáticos impediu à família a possiblidade de elaboração de um luto tão delicado, dadas as circunstâncias em que ocorrera a morte. O assassinato, concluiu-se depois no tribunal, foi praticado por motivo torpe. Um jovem ator ameaçado de perder a grande oportunidade de sua vida resolve atingir a filha da novelista, sua colega de cena e par romântico na novela. Sua esposa, na época grávida de 4 meses, também teria participado do crime, ainda que o tenha negado. A vítima sequer teve a possiblidade de reagir, já que quando recebeu as punhaladas estava desfalecida. Um roteiro macabro, digno de filme de terror. Ambos os criminosos foram julgados e condenados, cumprindo um terço da pena prevista.
O que Glória Perez conseguiu, no entanto, foi um endurecimento na lei penal do país, culminando em uma alteração na lei de crimes hediondos, que passou a incluir os homicídios qualificados.
Nesta série, dentre tantos aspectos que mereceriam destaque, fica evidente o quanto houve uma culpabilização da vítima por sua própria morte. Na narrativa do assassino, Daniella foi responsabilizada por desestabilizar o casamento dele com sua esposa, ainda que jamais tivesse ocorrido qualquer contato romântico entre os dois fora do set de gravação. É quase como a velha história de perguntar o que a mulher estava vestindo no dia em que fora estuprada. O que Daniella havia feito para ser morta?
Mas para além dos detalhes sórdidos deste crime bárbaro (sugiro fortemente que vejam a série produzida pela HBO Max, ainda que as críticas recaiam sobre a ausência da versão dos criminosos), cabe lembrar que, passados 30 anos, os crimes de feminicídio ainda tem altíssima incidência no Brasil. No Estado do Rio Grande do Sul, dados emitidos pela segurança pública indicam um alarmante crescimento de 35% no número de mulheres mortas somente no primeiro trimestre de 2022.
Da época do escabroso assassinato da atriz até os dias de hoje, pouco mudamos em nossa estrutura de sociedade patriarcal e misógina. Impossível desvincular esse fato do contexto governamental em que vivemos, onde há um reforço ao preconceito de gênero e uma escassez de políticas públicas de combate a este tipo de violência. Por aqui, infelizmente, a violência contra a mulher é corriqueira e aceita, e sabemos que as mulheres pobres, negras e periféricas são as mais atingidas.
Isso tudo revela também que a sexualidade feminina segue sendo um tabu social. Por muito tempo as mulheres foram consideradas o segundo sexo, o negativo do masculino. O “continente negro” teorizado por Freud provoca medo e fascínio, e gera o desejo de dominá-lo ou expurgá-lo. O feminino, presente desde as origens da sexualidade, é alvo de repúdio.
Mas o que afinal justifica que no Brasil a cada duas horas uma mulher seja assassinada? A resposta certamente é mais complexa, mas de algum modo as mulheres ainda representam ameaça na medida em que avançam para lugares cada vez mais igualitários, deixando para trás a posição à qual por muito tempo foram relegadas: a de inferioridade diante dos homens. A incidência da lógica fálica presente em nossa cultura é muito maior nas identificações masculinas, o que produz nos homens uma necessidade maior de negação dessa feminilidade originária, conforme aponta o psicanalista francês Jacques André. O temor presente nos homens se dá pelo medo de serem vistos como passivos ou afeminados, o que torna intolerável depararem-se com os aspectos da própria feminilidade e homossexualidade.
Desfrutar da passividade seria o equivalente a atravessar o “leito de rocha” teorizado por Freud em “Análise terminável e interminável” (1937). Ou seja, se os homens pudessem acessar o feminino enquanto potência presente tanto em homens quanto em mulheres, haveria uma maior permeabilidade nas formas de subjetivação. Talvez assim os homens pudessem se sentir menos ameaçados e temerosos em relação à castração e, consequentemente, diante das mulheres.
Obviamente isso não justifica completamente a violência contra as mulheres, mas mostra como determinados códigos ainda vigentes na cultura reforçam essas dificuldades de lidar com o que é da ordem do feminino.
Enquanto escrevo este texto leio a notícia de que uma menina de 10 anos foi assassinada brutalmente em Minas Gerais. Assim como Daniella e tantas outras, seu corpo foi encontrado em um matagal.
É preciso romper imediatamente com esse pacto brutal que retira, diariamente, a vida de tantas mulheres em nosso país!
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Cultura
Palavras-chave: Feminicídio, Violência, Daniella Perez, Psicanálise, Feminilidade
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