Observatório Psicanalítico – OP – 333/2022 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Onze de agosto

Julio Hirschhorn Gheller (SBPSP)

Esta é a data de criação dos cursos jurídicos no Brasil. Antes de 11/08/1827, os filhos da elite intelectual iam para a Europa com o objetivo de estudar em Portugal ou na França.

Há algum tempo, não sei dizer quanto exatamente, surgiu uma discutível brincadeira dos estudantes de Direito da USP que, para comemorar o Dia dos Advogados, instituíram a tradição debochada do “dia do pindura”, comendo e bebendo em restaurantes da área do Largo São Francisco e saindo sem pagar.

Só que neste 11/08/2022 a comemoração foi séria. Oxalá, possa ficar registrada na história por suas implicações. Os estudantes da São Francisco idealizaram uma carta que foi redigida por professores da Faculdade e lida, numa cerimônia emocionante, por uma mulher branca, uma mulher negra, uma mulher parda e um homem idoso branco. Elas foram precedidas por uma jovem estudante com um discurso que também cativou a plateia. A “Carta às brasileiras e brasileiros” se inspira na “Carta aos brasileiros” de agosto de 1977, escrita e lida pelo eminente jurista Prof. Goffredo Silva Telles Junior no pátio das Arcadas, defendendo o Estado de Direito em plena vigência da ditadura militar. A carta de Goffredo foi um marco na luta pela redemocratização. Agora, no ano da graça de 2022, observamos a mobilização de distintos  segmentos da sociedade civil em face das seguidas ameaças ao regime democrático por parte do atual mandatário, apoiado por alguns grupos de militares, setores evangélicos e políticos fisiológicos do assim chamado Centrão.

Outro documento, “Em Defesa da Democracia e da Justiça” capitaneado pela FIESP, congregou cerca de cem entidades empresariais e centrais sindicais – capital e trabalho associados – aliando-se na defesa da legalidade democrática e no respeito à manifestação popular, através do voto nas urnas eletrônicas.

Temos um governante que chegou ao cúmulo de questionar os resultados da futura eleição, caso não o favoreçam. Ainda teve o desplante de convocar os embaixadores de países estrangeiros para uma reunião com a finalidade de expor críticas às urnas eletrônicas, sem nenhuma prova a fundamentar seu raciocínio confuso e enviesado. Mais uma vez – para não perder o hábito – ele nos envergonhava perante o mundo. Talvez este episódio tenha sido a gota d’água para acordar o país no sentido de dar um basta a todas as barbaridades que vêm nos atormentando. Até aqui parecia haver uma letargia a nos acometer, redundando na passividade quase bovina com que esperávamos as eleições, como se estas fossem o jeito mais fácil e infalível de varrer o retrocesso do mapa. Quem sabe as repetidas insinuações de desrespeito ao eventual resultado desfavorável na eleição tenham, finalmente, impulsionado um movimento de reação ao avanço de propostas golpistas. Por incrível que pareça, não tinham sido suficientes, até então, os indícios de tentativas de intermediação e corrupção no caso das vacinas para a Covid-19, nem os negócios escusos envolvendo o Ministério da Educação, nem a falta de compostura, o comportamento grosseiro, o palavreado chulo, as falas homofóbicas, o machismo, a misoginia e a impressionante indigência cultural que caracterizam as atitudes do presidente. As condutas equivocadas quanto à pandemia, o estímulo ao armamento da população, o desprezo pela ciência e pela cultura, as pautas de costume retrógradas, o desmonte de órgãos de controle de infrações ambientais a facilitar o desmatamento, caça e pesca ilegais, o descaso em relação à criminalidade que campeia na Amazônia, tudo isso também não gerou mais do que notas de repúdio dentro de bolhas específicas e esparsos protestos de rua. Mais de uma centena de pedidos de impeachment foram engavetados, uma vez que o presidente da Câmara não se dispõe a dar andamento a nenhum processo desta ordem. O procurador-geral não procura nada porque não quer cumprir sua função. O STF é contestado, com alguns ministros sendo ofendidos quando contrariam os interesses pouco republicanos do inquilino do Planalto.

O momento é tão grave que não cabe mais divisão no campo democrático. Banqueiros, empresários, artistas, intelectuais, juristas, sindicalistas, políticos e economistas assinaram a Carta, apesar de evidentes diferenças ideológicas entre eles. Psicanalistas, tanto individualmente quanto institucionalmente, também aderiram ao documento.

Para o recente Congresso da Febrapsi preparei uma fala, apresentada em 24/03/2022, ressaltando a necessidade de nos envolvermos com a pólis, principalmente em tempos tão difíceis. Relembrei que durante a ditadura militar houve uma espécie de silêncio dos psicanalistas, com uma opção pela neutralidade. A Revista Brasileira de Psicanálise apresentava a psicanálise como uma ciência pura, sem relação com o campo social e político. A tendência era pela abstinência em assuntos destes campos. As sociedades psicanalíticas estavam mais voltadas para dentro e o trabalho de consultório priorizava questões do mundo interno e a relação transferencial. O triste episódio do tenente-médico Amilcar Lobo, inacreditável doublé de candidato em formação analítica e torturador a serviço da repressão nos porões da ditadura, foi tratado com leniência pelas instituições psicanalíticas. A colega Helena Besserman, que denunciou a situação, foi quem sofreu sanções no início da apuração do caso, acusada de ser caluniadora. Tentava-se ocultar ou minimizar o lastimável fato para não prejudicar a imagem da psicanálise brasileira.

Parecia uma emulação da conduta da IPA, que entre as grandes guerras do século passado resolveu seguir uma política de “salvamento” da psicanálise. Consistia em não dar qualquer pretexto ao nazismo para proibir a prática da psicanálise. Desta maneira, no frigir dos ovos, era uma tentativa de se antecipar ao autoritarismo nazista, acarretando uma colaboração com os propósitos do Instituto Göring, um grande programa de arianização da psicanálise, depurando-a de um suposto “espírito judaico”. Na Alemanha os psicanalistas judeus foram expurgados dos quadros oficiais de suas sociedades por meio de demissões supostamente voluntárias. Vários analistas foram mortos na Alemanha, Áustria e Hungria, enquanto outros tiveram que se exilar. A conduta do “salvamento” não evitou o processo de desmantelamento da psicanálise nestes países.

Além dos descalabros do atual governo existem problemas específicos e crônicos para serem encarados pelas instituições psicanalíticas com urgência. O alto custo de uma formação elitista interdita o acesso aos Institutos de pretendentes que não pertençam às classes economicamente abonadas. O racismo estrutural começa a ser enfrentado em algumas sociedades, assim como o preconceito em relação à homossexualidade. A percepção de que replicamos os privilégios de uma elite acomodada é algo que precisa ser amplamente discutido, visando ações afirmativas com a finalidade de modificar estruturas arcaicas.

Diante de tantas questões que deveriam nos afligir, não cabe a recusa da realidade. No Brasil, temos pouco tempo para lutar a favor do Estado Democrático. A neutralidade analítica – entendida como a recomendável atitude de reserva implicada do analista – não pode ser confundida com insensibilidade, indiferença e descaso em relação aos pacientes e ao mundo em redor. Hoje em dia, o verdadeiro “salvamento” da psicanálise passa por não permitir a alienação e o embotamento da capacidade de se pensar a relação com os pacientes sem perder de vista nossa interação com a cultura vigente.  

O olhar para fora de bolhas endogâmicas, o diálogo com outras disciplinas e a participação no debate público, especialmente em períodos de turbulência social, são o caminho para evitar a asfixia do método que tanto prezamos. Existe um tipo de neutralidade que é mortífera, só pode conduzir à desvitalização.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave: Abstinência, Alienação, Bolhas endogâmicas, Neutralidade, Recusa da realidade.

Foto: Edilson Dantas/Agência O Globo

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Tags: Abstinência | Alienação | Bolhas endogâmicas | neutralidade | Recusa da realidade
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