Observatório Psicanalítico – OP – 330/2022 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Mundo virtual: entre a conexão e a desconexão 

Sarah Barretto Prado (SBPRP) 

O que é estar conectado? O que é se desconectar? Para pensar sobre isso acredito que devemos levar em conta que dentro de cada um de nós existem emoções, crenças, medos, angústias que carregamos. Algumas mais suportáveis, outras menos. E que diante delas, talvez das que temos mais dificuldade em aceitar, vamos criando estratégias, tanto no mundo real, quanto no virtual, para entrarmos em contato ou nos distanciarmos desses aspectos. Diante dessa conexão ou desconexão com a gente mesmo, também criamos estratégias para nos conectarmos, ou não, com o outro. Sabemos também que não há um eu desconectado do outro, desde que nascemos precisamos nos conectar a um outro para nos tornarmos humanos, e essas conexões vão se desdobrando ao longo de nossa vida. O mundo virtual vem se transformando numa velocidade tamanha que tentamos, sem sucesso, acompanhar esses avanços. Algumas vezes somos alvo dessas estratégias, sem mesmo percebermos que são propostas bastante sedutoras que atendem a intensos e íntimos anseios. 

As falas utilizadas a seguir são ficcionais, frutos de “conjecturas imaginativas” a partir do que vivo em minha clínica e em minha vida, acredito que são representativas do momento que vivemos e podem nos ajudar a refletir sobre o tema. 

Maria me diz: dei um unfollow em todas as pessoas que são defensoras do político X, não suporto esse tipo de gente, quero na minha rede apenas pessoas que pensam de forma parecida à minha. João me mostra seu novo perfil do Tinder, tenho dificuldade para reconhecê-lo na foto, está visivelmente transformado. Penso: onde está o João? Carol, desde que se mudou de cidade, vem se relacionando com o namorado virtualmente. Em nosso encontro, me diz: vou até à cidade dos meus pais, preciso terminar com o Zé, não consigo fazer isso pelo celular, preciso fazer isso olhando pra ele. 

Há algo de novo na forma de nos relacionarmos com nós mesmos e com o outro a partir da tecnologia?

A ideia de que podemos eliminar permanentemente certos tipos de pessoas da nossa vida pode parecer bastante atraente, nos traz uma ilusão almejada; de que temos controle sobre algo, mas de repente aquele “tipo” que tinha certeza que estava eliminado aparece, é meu novo chefe ou o novo namorado da minha filha. Desejamos estar entre iguais, mas no fundo sabemos que nossos interesses também moram em nossas diferenças, no que o outro traz de novidade, no que nos expõe a nos tornarmos outra pessoa. Talvez um dos adoecimentos contemporâneos seja a incapacidade de pensar e dialogar diante do diferente. 

Existe um abismo entre a imagem que ansiamos ter – plana e retocada – e a dura realidade de nossa forma que contém textura, cheiro, defeitos e estranhezas. Para algumas pessoas, a grande dificuldade de abrir mão da imagem ideal faz com que prefiram a distância segura da virtualidade. 

Porém, sabemos que os encontros amorosos são feitos de constrangimentos, estranhamentos e silêncios, aspectos que muitas vezes queremos evitar, e para que encontros genuínos aconteçam são necessárias exposições do eu, exposições de aspectos verdadeiros e não de personagens auxiliares, de avatares idealizados. Cabe essa exposição dentro do mundo virtual? Controlamos esses personagens criados por nós, ou somos controlados por eles? 

Ana, uma adolescente, me pede ajuda para construir uma forma de dizer aos seus amigos da escola que não poderá ir a um encontro que eles estão organizando, acha que eles ficarão bravos. O motivo é que tem um encontro com os amigos virtuais, um campeonato de jogo online. Seus amigos da escola jamais entenderão, até porque eles não compartilham dos mesmos interesses que ela. Raul chega dizendo: a pandemia foi maravilhosa para minha vida social, fiz muitos amigos, de diferentes lugares, agora o difícil está sendo esse retorno, me sinto isolado e sozinho. Roberta chega muito animada contando que conheceu uma pessoa nova, recebeu uma mensagem pelo Instagram e começaram a conversar. Apesar de estar interessada, está bastante desconfiada. Já descobriu algumas pessoas que conhecem em comum, vai conversar com uma delas para ver se levanta algumas informações. Deu uma olhada também em todos os perfis que ela tem na rede, pra ver que tipo de coisas ela posta e curte e verificar se há algo suspeito. Joana chega chateada, diz que houve uma briga muito feia no grupo da família, coisas horríveis foram ditas e o grupo se desfez, sente que os familiares não serão capazes de dialogar e construir um ambiente possível de conviver novamente. 

No mundo virtual novas formas de relação podem encontrar uma expressão, pessoas com interesses comuns se conectam, se sentem pertencentes, encontram identificações, coletivos amplificam seu poder, redes de colaboração são criadas, como a Wikipédia, por exemplo, e grupos de manifestação são  organizados. 

Porém, a virtualidade possui recursos, como os algoritmos que sustentam as chamadas bolhas. Grupos homogêneos e usuários acabam cercados por um contexto que lhes dão a sensação de que todos se parecem e pensam como ele, há um prejuízo da percepção da realidade e da verdade, há uma retroalimentação dentro das bolhas. Os algoritmos não são programados para dar uma visão geral do mundo, mas sim para aumentar o tempo de permanência do sujeito na rede, dizem os especialistas. 

Um colega me disse essa semana que há uns 20 anos, durante sua graduação, ouviu que em alguns anos receberíamos apenas informações que gostaríamos de ler. Todos consideraram uma teoria da conspiração. Nesse contexto, a diferença parece mesmo eliminada, algo diferente seria intolerável. Temos o desejo de buscar territórios seguros, verdades absolutas que eliminam qualquer dúvida. 

O que será que nos torna mais ou menos capazes de lidar com as dúvidas e incertezas? 

Nascemos todos extremamente dependentes de um outro. O primeiro ano de vida é um ano de acontecimentos muito importantes na vida de um bebê e ele depende muito de quem cuida dele. Se tudo corre bem, este bebê vai construindo segurança e confiança, quem cuida recebe os medos e a angústia, administra e devolve de forma mais tolerável. Há pessoas menos vulneráveis, que convivem melhor com incertezas, faltas, incompletudes. Quando isso não é possível ela é facilmente capturada por movimentos que se apresentam como detentores da verdade, que possuem exatamente aquilo que lhe falta. 

Durante a pandemia, vimos ao vivo e em cores que até mesmo a ciência abriga a dúvida e incertezas em seu processo; presenciamos, ainda, a construção de muitos grupos agarrados fortemente a uma verdade absoluta, temerosos em colocar suas certezas em questão. Aí está também um terreno fértil para a disseminação das Fake News. 

Lúcia, uma jovem adulta, acaba de ser promovida para um alto cargo com trabalho 100% home Office. Resolve então retornar à casa dos pais. Em seu novo cargo, sente-se potente e valorizada; isso muda quando, no final do dia, fecha seu computador e se depara com um ambiente frio, de pouco diálogo, que remete ao seu passado. Sente que pode viver sua potencialidade apenas em seu trabalho remoto. Ricardo me diz, angustiado: não consigo me concentrar no que estou fazendo, não me sinto inteiro em nada do que faço, seja estudando, cuidando do meu filho, na academia ou trabalhando. Tenho que checar meu celular o tempo todo, tento não fazer isso, mas não consigo. 

Segundo a Psicanálise, a capacidade de pensar se desenvolve a partir do contato íntimo com o outro, ou seja, o pensamento tem a ver com intimidade. O bebê vai aos poucos percebendo que ele não é o mundo, que ele é separado daquele que cuida dele, vai notando, então, que esse outro tem existência própria. Condições vão surgindo para o princípio de realidade agir. Começa a se desenvolver, como diz Bion, um “aparelho para pensar os pensamentos”. 

Esse processo exige um intenso esforço psíquico, que leva à expansão e transformação. Penso que a virtualidade pode ser usada, algumas vezes, como uma busca de prazer sem fim, como uma evitação dessa complexidade e desse esforço psíquico que a realidade exige, é uma estratégia atrativa de um mundo do sim e do não, mais simples do que viver na complexidade. A conexão – com a gente, com o outro, com o mundo – inclui contato com a realidade, com as faltas, fragilidades, possibilidade de tolerância, contato com imperfeições. Aspectos que são característicos do humano, e que não podem ser negados. 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave: Virtual, Conexão, Desconexão, Tecnologia, Contemporaneidade 

Foto da Obra “Dois acenos”, de Pedro Sant’Anna. 

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Tags: Conexão | Contemporaneidade | Desconexão | Tecnologia | Virtual
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