Observatório Psicanalítico – OP – 322/2022 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

A arte é uma só

Carolina Freitas (SBPdePA)

“O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar realidades.” (Hannah Arendt)

Penso que a ARTE é uma só, como vem sendo construído em discussões na atualidade sobre o tema, por exemplo na Bienal de São Paulo e nas exposições históricas do MASP. Reconstroem-se, assim, as nossas memórias, subjetivando nossa cultura e nossos processos identitários, ou seja, através de uma arte que cria novas realidades, com a leitura do real.

A efervescência cultural da Semana de Arte Moderna de 1922 ocorreu no Teatro Municipal de São Paulo. E trouxe vários gêneros artísticos, reunindo diversas apresentações de dança, música, recital de poesias, exposição de pinturas, esculturas, literatura e palestras. Celebrávamos os cem anos da Independência do Brasil e sessenta e seis anos da Abolição da Escravidão. O nosso país estava em busca da construção de sua singularidade.

A propósito, convém evocar: além dos povos indígenas que aqui viviam, ocorreram diversos processos migratórios em nossa história. Eles foram geradores de multiplicidade cultural e formadores de nossa diversidade.

Janine Puget, em um texto sobre subjetividade social, diz: “Uma complexidade maior surgiu a partir da percepção que o espaço social é permeável a eventos políticos, sociais, culturais e climáticos, esperados e inesperados, que modifiquem sua organização e tragam problemas novos e desconhecidos.”

Com esse estímulo, vamos nos aproximando do que me proponho pensar: o impacto de eventos artísticos. O que os fazem emergir?

Sabemos que muitos dos jovens envolvidos na quebra de paradigma, que foi o movimento modernista, vinham de estudos na Europa e retornavam como um flaneur parisiense (Benjamin sobre Baudelaire), o que nos era desconhecido.

Já nós, brasileiros, desde os séculos que vivemos sob a soberania de Portugal, negligenciamos parte fundamental da nossa história, especialmente a que diz respeito aos habitantes nativos. Seus hábitos e cultura foram (e vem sendo) desprezados, assim como o próprio direito de serem livres, abafando uma identidade nacional já existente. 

Outro ponto de extrema importância foi a quantidade de navios desembarcados em nossa costa, trazendo homens e mulheres forçadamente vindos da África, com a finalidade de os fazerem escravos. Tentaram borrar suas origens, bravamente mantidas por eles através da arte, da música, da religião, da dança, da história contada e tanto mais.

“Temos medo dos que pensam diferente e mais medo ainda daqueles que, são tão diferentes, que achamos que não pensam. Vivemos em estado de guerra com a alteridade que mora dentro e fora de nós. Esse é o defeito original das fronteiras que fabricamos.” Mia Couto.

Esta é uma bela reflexão do ficcionista, ponderando nossas limitações, expandindo o pensar e ilustrando a importância de reconhecermos essa alteridade, no vir a ser sujeito de seu próprio desejo, como pondera Lacan. Afinal, a arte é vivenciada por cada um, de uma forma singular, sem fronteiras.

A propósito, Michael Pollak, sociólogo, desenvolve todo um estudo sobre Memória e Identidade Social. Para ele, nossos registros vêm sendo tecidos pelas memórias ou histórias contadas e vividas por nós mesmos e por outras gerações. O autor propõe que a narrativa oral tem tanto valor quanto a escrita.

Voltando aos vanguardistas da modernidade, entendo esse movimento como uma busca de consolidar, através da Arte Moderna, uma identidade, refletindo a Brasilidade, que é inevitavelmente ligada à origem e inclui a todos como brasileiros.

Na Europa do século XIX, vivia-se a Belle Époque, marcada pela euforia do progresso técnico-científico ocidental, quando surgem, por exemplo, a Teoria da Relatividade (Albert Einstein), a descoberta da radioatividade (Marie Curie), o telefone (Graham Bell), os veículos motorizados e a psicanálise, pelo genial Freud.

Acompanhando a cronologia dos textos Freudianos, sabemos que a psicanálise já vinha sendo pensada e difundida, desde antes da Primeira Guerra Mundial, e seguiu o seu percurso de desenvolvimento, enfrentando as contingências daquele momento, o que inclui a chegada da Segunda Guerra, quando os tempos eram de muita tensão. Nesse caso, a própria psicanálise sofria tentativas ferrenhas de supressão.

Trago todo esse olhar para a nossa contextualização, pois proponho que a memória seja pensada como um fenômeno coletivo e social. Assim, vamos sendo influenciados e constituídos pelos atravessamentos políticos e sociais inerentes à vida, os quais criam nossos registros. A arte seria uma manifestação criativa que demarca os tempos, sem perder a sua singularidade e a capacidade de gerar emoções individuais e coletivas inesperadas.

Sabemos que o pai da Psicanálise não tinha muita simpatia pelos modernistas, porque nutria um gosto mais conservador, tendo apreciação pelos clássicos ou pelos Renascentistas. No entanto, podemos tomá-lo como um modernista, pela criação de uma ciência “inovadora”.

Freud trouxe a arte da escuta, através da narrativa de associações livres, que foi sugerida em sua técnica, no encontro com o outro, e marcada pela descoberta da Interpretação dos Sonhos, do Inconsciente e da Transferência. Vale lembrar que, em 1930, ele recebeu o importante prêmio literário Goethe em Frankfurt, justo pela arte de sua escrita.

Observamos assim a Semana de Arte Moderna concomitante à grande virada de vinte, na obra de Freud, com o texto “Mais além do princípio do prazer” (1920), onde reconfigura o dualismo pulsional, ao definir as pulsões de vida e morte e a hegemonia do princípio do prazer. Uma coincidência? Ele diria que não existe. Por isso, também o considero um modernista que rompeu com a academia e lutou pela liberdade de vir a ser sujeito de seu próprio destino e arte. A arte da Psicanálise. A arte do encontro.

A meu ver (sentindo), a obra Modernista mais tocante é Abaporu, de Tarsila do Amaral. Sim, é também a mais famosa, mas, em meu caso particular, pode ser por estar no MALBA, em mi Buenos Aires querida, cidade que também faz parte de minhas origens, o que, talvez, transcenda a controvérsia em torno dos reais motivos de uma obra tão representativa não estar no Brasil. Além do belíssimo processo criativo de sua elaboração, sabemos que foi o presente de aniversário para seu marido, Oswald de Andrade, e que se constitui na obra com maior alcance subjetivo de nosso processo identitário. E mais: inspirou o Manifesto Antropofágico. Ela pinta, escreve, dança e canta que a Arte é uma só.

Com uma visão possivelmente mais romântica, entendo e respeito todos os debates sobre a sua questionada aquisição, porém, como venho da tríplice fronteira (Uruguai, Argentina e Brasil), não vejo tais fronteiras criadas por nós como construtivas. E, como bem descreve Mia Couto, mencionado acima, e a letra, abaixo, da música intitulada, Movimiento, assim escrita para ser cantada por todos os lados:

“Somos una especie em viaje

No tenemos pertenencias sino equipaje

Vamos com el polen en el viento

Estamos vivos porque estamos em movimiento

Nunca estamos quietos, somos transhumantes

Somos padres, hijos, nietos y bisnietos de imigrantes

Es más mío le que sueño que lo que toco.“ (Jorge Drexler)

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Categoria: Cultura

Palavras-chave: Arte, Psicanálise , Modernismo, Memória e Identidade.

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Categoria: Cultura
Tags: arte | Identidade | Memória | Modernismo | Psicanálise
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