“SANKOFA”, “CURA” – para ouvir e pensar – Vidas Negras Importam XV
Mauro Campos Balieiro (SBPRP)
Djamila Ribeiro (2019), em seu “Pequeno Manual Antirracista”, nos orienta em um dos capítulos: leiam autores negros! Isto faz parte do necessário “letramento racial”, que considera a necessidade de desconstruirmos formas de pensar e agir em relação ao racismo, que foram naturalizadas ao longo do tempo. Lia Vainer Schucman (2015) considera que: “O letramento racial é uma forma de responder individualmente às tensões raciais. Ao lado de respostas coletivas, na forma de cotas e políticas públicas, ele busca reeducar o indivíduo em uma perspectiva antirracista”.
Mas, este não é um texto teórico, antes de tudo, é parte de meu próprio letramento, que me impõe a pensar o racismo que me habita e avançar além das fronteiras do que reconheço como meus próprios pensamentos. Este é um texto para prestigiar os artistas negros, aqueles que escaparam das balas assassinas do Estado e sobreviveram ao extermínio da população negra em nosso país, aqueles que, com sua arte, nos conclamam ao sublime como forma de existir e resistir.
Falo de Amaro Freitas, um jovem pernambucano que desponta na cena musical mundial do jazz. Seu terceiro disco, Sankofa (2021), é uma obra prima, com destaque ÀS faixas Sankofa – que abre o disco -, Vila Bela e Nascimento.
Falo também de Jonathan Ferr, um jovem pianista carioca do subúrbio de Madureira, apresentado na página de Rio Montreaux Jazz Festival de 2020 como o “garoto-estandarte” do jazz carioca, que “tem como objetivo transformar o Jazz em um gênero musical mais acessível, atraindo e encantando as novas gerações e popularizando esse tipo de música dentro de um contexto de periferia”.
Em uma matéria recentemente publicada no The Guardian sobre os artistas negros do jazz brasileiro, Jonathan Ferr diz que o jazz lhe ofereceu a liberdade, enquanto o rap lhe mostrou o lugar de um homem negro em uma sociedade racista. Foram essas duas músicas, de origem negra, que lhe deram o poder de ser ele mesmo!
Seu segundo disco, chamado “Cura”, é tão primoroso quanto “Sankofa” de Amaro Freitas, e seguramente precisa ser ouvido. A quarta faixa do álbum recebe o nome de “Esperança”, e a letra é interpretada por Serjão Loroza, que reproduzo a seguir:
Aqui é Jonathan Ferr, / Te mandando esse recado / Se você não entender, já tô super preparado / Tô pronto e muito armado com minha arte nas mãos / Munido de verdade e ainda tem muita munição
Porque eu falo de amor, / Mas falo de ódio também / Já cansei de sentir dor / Cansei de ser refém
Dos tiros de fuzil, que matam só inocentes / Um corpo preto cai a cada 13 minutos /
Me diz você.. / Quem é o delinquente ?
Já morreu criança, / trabalhador e aposentado / E a carteirinha pra morrer é só ser preto e favelado?
Que morre todo dia executado, assassinado / Sem direito a julgamento e com atestado de culpado.
Até quando você vai fingir que não vê isso? / Vai ligar a TV e achar que não tem compromisso? / Normatiza homicídio, e se cala, omiti. / Porra! Suas ações valem bem mais que sua hashtag no twitter!
Fora homofônico, Misógino, fora Racista! / Seu preconceito mata mais que mil fuzis. / E legitima as barbáries que acontecem nos Brasis.
Mas olha / Se você tá nessa luta comigo / É um aliada, aliade, aliado / Porque nossa força juntas vão deixar um legado / Eu não vou me calar, eu vou falar até o fim / Porque eu tenho um sonho, igual Martin Luther King
Um sonho de um mundo com amor, afeto e abundância. / Porque eu sei, que a cada nove meses, / Nasce uma nova esperança.
Sankofa é um ideograma presente no adinkra, conjunto de símbolos ideográficos dos povos acã, grupo linguístico da África Ocidental representado por um pássaro que volta a cabeça à cauda. Segundo Abdias Nascimento, o símbolo é traduzido por: “retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”.
Retornando ao passado de nossa música, lembremos de Johnny Alf, que ao final da década de 50 gravava a canção “Rapaz de bem”, exercendo uma enorme influência no surgimento da Bossa Nova com sua canção símbolo “Chega de saudade”, magistralmente interpretada por João Gilberto. Johnny Alf era negro, de família pobre, não tinha parentes e morreu em um hospital em decorrência de um tratamento de câncer aos 80 anos. Segundo o jornalista Ruy Castro, Johnny Alf foi o verdadeiro pai da Bossa Nova, mas nunca teve seu talento como artista devidamente reconhecido. Tom Jobim o admirava tanto que chegou a apelidá-lo de “Genialf”. Marcello Dantas, curador da mostra sobre os 50 anos da bossa nova, disse que Johnny Alf foi “o caso clássico do artista que não teve o reconhecimento à altura de seu talento”.
Ouçamos Amaro Freitas, ouçamos Jonathan Ferr, ouçamos Sankofa ,e a Cura! Ou quem sabe poderíamos dizer: Sankofa, cura!
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