Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Sódepois 41
Setembro/2023
Neste mês em que os termômetros do país marcaram temperaturas recordes de calor e mediram, uma vez mais, nosso grave índice de insegurança climática, vimos um fervilhar de acontecimentos que movimentaram o Planalto Central, como o início do julgamento e prisão dos criminosos de 08.01.23, acompanhados de tentativa de manipulação e vitimização por parte dos grupos bolsonaristas; a derrubada da tese do marco temporal pelo STF e a reação imediata e inconstitucional do Senado, que aprovou projeto de lei (PL 2903) com claros interesses ruralistas e objetivos genocidas em relação aos nossos povos originários, ferindo seus direitos para muito além da merecida demarcação territorial – desde o questionamento de terras já regularizadas à negação da identidade indígena, seu direito ao isolamento voluntário e reformulação de conceitos como a tradicionalidade da ocupação, direito originário e usufruto exclusivo de seu território – uma tragédia humanitária e de alto impacto ambiental que esperamos que encontre o veto presidencial; e, ainda, a disposição da Suprema Corte para pautar a descriminalização do porte de drogas e da prática do aborto. Temas que há tempos vêm fazendo nosso caldeirão indigesto de ingredientes múltiplos como intolerância, desigualdades, preconceitos, desinformação, ganância, injustiça social e ambiental ferver.
Rosa Weber, ministra do STF que sempre se caracterizou por seu posicionamento progressista, em seus últimos dias de presidência na Corte proferiu voto favorável à descriminalização do aborto (ADPF 442). Ao defender a instauração de uma justiça social reprodutiva, assume o debate para além da disputa binária entre a vida da mãe e do feto e propõe a defesa ampla dos direitos fundamentais da mulher, sua liberdade de construir um projeto de vida digna que inclua a escolha por manter ou não a sua gravidez. Num país onde as maiores vítimas do aborto clandestino são as mulheres pobres e negras, em que sofremos diariamente os efeitos de uma sociedade patriarcal, machista, racista e misógina, justiça social reprodutiva é a síntese do que verdadeiramente necessitamos. Não à toa, inúmeras lideranças femininas e de luta pela defesa dos direitos humanos se viram representadas nas palavras da ministra, que corajosamente enfrentou os espinhos e alargou o caminho para esse caloroso debate. Não contaremos mais com Rosa, que agora se aposenta ao completar 75 anos. Sua saída aponta para mais um elemento de nosso caldo de lutas e desafios: representatividade. A campanha por uma ministra negra que a substitua na Suprema Corte, predominantemente branca e masculina, está atenta à riqueza trazida pela diversidade. Que a escolha, prerrogativa do presidente, contemple o reconhecimento de nossa pluralidade e a necessidade de reparação de nossa dívida histórica junto aos descendentes dos escravizados.
A desigualdade social carrega injustiça, fome, desemprego, acompanhados de dor e sofrimento psíquico. O discurso de ódio e a intolerância ao diferente vêm tingindo a trama de nosso tecido social, dificultando, cada vez mais, o convívio com o outro. O núcleo familiar é um dos ambientes onde podemos testemunhar este adoecimento, e acolhê-lo também é tarefa da escuta psicanalítica. Sensível a essa realidade, o OP abre as publicações deste mês com o ensaio “Sobre o Trabalho Psicanalítico com Casal e Família” (OP 423/2023), de autoria da Comissão de Psicanálise de Família e Casal da Febrapsi, que destaca: “Nosso trabalho é uma abertura às produções interfantasmáticas, mas não se reduz às somas dos fantasmas e fantasias inconscientes individuais, vai além, vai ao encontro da possibilidade de lidar com o diferente, com o antagônico”. “Estar no lugar do diferente é, muitas vezes, insustentável. Não raro, observamos abuso do álcool, das drogas e a depressão. Esse passa a ser o ‘paciente identificado’, o ‘porta-dor’ das identificações projetivas da família”, e concluem trazendo-nos a relevância deste trabalho, que nos permite perceber “com nitidez a influência do meio familiar e da cultura na construção da subjetividade”.
E na construção dessa subjetividade, um exemplo pungente de adoecimento social é retratado no belo ensaio de Mayarê Baldini (SPBsb), “Medicina de calças baixas” (OP 426/2023). O evento, divulgado nas redes sociais e conhecido como “punhetaço”, traz a cena grotesca de masturbação coletiva de supostos futuros médicos enquanto assistiam ao jogo de vôlei de suas colegas, “num pacto que só o pior da masculinidade é capaz de produzir”. Mayarê pergunta-se o que os levaria a pensar que não seriam punidos, e ela mesma responde: “Um pouco de blindagem de gênero, por ser homem. Um pouco da categoria: ser homem, estudante de Medicina. Um pouco da classe social: ser homem, estudante de Medicina, faculdade particular caríssima”. “A Medicina misógina não é exatamente um lançamento dessa geração universitária. Os crimes sexuais praticados por médicos são numerosos, noticiados há décadas…”. A ética do cuidado precisa ser ensinada, aprendida, vigiada. A começar pelo cuidado dos cuidadores, pelo reconhecimento de sua própria fragilidade. Sim, Mayarê, a masculinidade tóxica não se cansa, intoxica homens e mulheres, e também por essa razão, a pluralidade nas mais variadas instâncias do país faz-se urgente e necessária.
Para além dos termômetros, as altas temperaturas também estão presentes nas redes sociais, e o olhar atento de Marielle Kellermann (SBPSP), em “Menu do difícil” (OP 428/2023), acompanha a novela contemporânea das relações líquidas e instagramáveis, dessa vez lançada e protagonizada por Luisa Sonza. A artista de milhões de seguidores cantou a paixão vivida com Chico, seu namorado, um enorme sucesso. Uma ode ao romantismo e à monogamia embalada pela sonoridade intimista da bossa nova. Meses depois, compartilha a dor da traição. A rede fervilha: “Se muita gente comenta, consome, pesquisa, é porque essa dor é comum, compartilhável, não apenas em botões de redes sociais, mas no sintoma e sofrimento próprio de cada um”. “O próprio conceito de traição é pilar sustentador da lógica da monogamia. Se a monogamia propõe-se, a partir de combinados, a conter a realização do desejo, supõe, em sua estrutura, que o desejo não funciona assim, contido. A presença de grades faz a gente inferir o risco de fuga ou invasão”. Marielle convida-nos a pensar sobre a lógica da monogamia e do desejo, onde a dor da traição poderia estar “apoiada em fundamentos mais atemporais como nosso frágil narcisismo e o desamparo do amor objetal que nunca, jamais atenderá ao nosso anseio de devorar o outro, de dominar, engolir, possuir e na direção contrária, se fundir, ser possuída, preenchida por um outro que nos eleja e nos complete in-tei-ra-men-te”. Seja numa monogamia ou não, viver o desejo é difícil, conforme conclui Marielle: “Lidar com nosso desejo de sermos amados como objetos únicos e totais é difícil. Esforçar-se e sofrer para controlar o desejo do outro é difícil. Há várias opções no cardápio, fique à vontade para escolher o seu difícil”.
Sylvain Levy (SPBsb), em seu ensaio “OS SEM-PROPOSTAS” (OP 425/2023), aponta para um outro campo de expressão e mobilização do desejo, o coletivo, onde o nosso cardápio de dificuldades tem sido amplo, em especial no espectro progressista. Aliás, como ressalta o autor, a extrema-direita vai bem, obrigado, com muitas de suas lideranças eleitas mundialmente ou prestes a confirmarem sua vitória, como é o caso da Argentina. O aumento expressivo das células nazi-fascistas no Brasil ou pelo mundo é outro exemplo e, confirmando o crescimento e a articulação deste campo, vimos ser protocolada em nosso parlamento, em 27/09/23, PEC que visa anular, pelos congressistas, as decisões do STF (em especial aquelas que citamos neste editorial), tal qual a reforma judicial proposta por Benjamin Netanyahu em Israel, fato que tem levado centenas de milhares de opositores às ruas daquele país, há 40 semanas, em manifestações pela defesa de sua democracia. “A ausência de proposições, temas e lemas que galvanizem os indivíduos e os façam pensar como cidadãos, por si só já é suficiente para ser pensada como uma das causas para o distanciamento entre a população e os partidos de esquerda, entretanto, deve-se atinar também com a falta de um elo de comunicação com a sociedade, pois as ideias vêm do povo e aos partidos e políticos cabem captá-las e com elas sintonizar e ampliá-las nos fóruns políticos e de governo”. É no potencial de transformação a partir da nomeação do que nos causa angústia que vemos Sylvain apontar a possibilidade de novos caminhos: “…quem sabe, se a partir da percepção de que existe esse vazio de propostas possa acontecer nas mentes uma angústia transformadora capaz de evoluir para uma provocação individual e contribuir para gerar alguma alteração da dinâmica coletiva e por consequência, na sociedade”. Que nossa inquietude e insatisfação possa nos movimentar nessa direção…
O exercício da cidadania e a demanda por construção e transformação poderão se dar, vale lembrar, no microcosmo da própria instituição psicanalítica, como nos relata Carmen Prado (SBPdePA) em seu ensaio/testemunho, “O ‘Quarto Eixo’ da Psicanálise: esse caminho, espero, sem volta” (OP 427/2023). O que seria o “Quarto Eixo”? Carmen explica: “Sempre ouvimos sobre os três eixos, pilares da formação analítica: análise pessoal, seminários e supervisões. Mas, já há algum tempo, atenção tem sido dada a este espaço de convivência institucional, e à importância que ele traz para nossa formação como psicanalistas. Daí o nome – Quarto Eixo”. E continua: “Aterrissando neste momento, percebi este mundo que vai além do famoso tripé. Para mim, um deslumbramento. Logo me inseri na Comissão de Comunidade, interessada que sou pela ampliação da psicanálise porta afora, para as ruas, praças, escolas, lugares outros, enfim”. Estamos juntas, Carmen, nesta tentativa, de preferência vibrante, de se levar a escuta psicanalítica para além dos muros de nossas clínicas, e reproduzimos aqui o seu convite: “Este tal de Quarto Eixo nos pega de jeito…espero que siga pegando de jeito também os novos colegas que chegam (cada vez mais!) à psicanálise. Este mergulho certamente vale a pena”.
E é exercendo sua liberdade de imaginação e curiosidade pelas ruas e “andanças pelo sertão”, que Cristina de Macedo (SPRPE) se encanta com Água Branca, na serra alagoana, e suas três pedras cor de rosa-choque assentadas próximas umas das outras. “A miragem das três encanta e inquieta. A ponto de me provocar, de imediato, algumas indagações que, como podemos testemunhar, desdobraram-se no texto “AS TRÊS PEDRAS O QUE É DAS TRÊS PEDRAS” (OP 424/2023). Em conversa com morador local, a autora descobre que o lugar foi organizado de modo “que as pessoas pudessem prosear assim que o sol pensasse em descansar”, uma busca “pela troca de ideias, um olhar, um sonho, uma cor, ou o falar do que agonia, do que afaga, do que endurece e enternece, é extremamente humano”. “Vi Freud sentado em uma das pedras róseas, conversando com seus amigos e interlocutores ao tentar compreender a si e ao mundo ao seu redor”. O lugar foi batizado, pelos seus moradores, de Três Pedras, e Cristina, ao final de seu ensaio, questiona: “E o que é das Três Pedras?” “É a exuberância do rosa esculpido em carga humana. É o mito fundador da Palavra e do encontro entre os seres”, responde ela, convidando-nos a nos sentar, prosear e divagar…
Além dos ensaios acima, nossa página do Instagram relembra as seguintes publicações: “A mulher e o feto” (OP 376/2023), de Lina Schlachter Castro (SPFOR), que aborda a questão do aborto a partir da leitura do livro “O acontecimento”, da Nobel de Literatura Annie Ernaux; “Homem (também) chora: a respeito da masculinidade tóxica” (OP 133/2019), em que Márcio de Assis (SBPSP) nos oferece uma boa reflexão sobre o tema e, por último, neste mês dedicado à prevenção ao suicídio, também conhecido como Setembro Amarelo, relembramos o texto “Suicídio na adolescência – espelho de um narcisismo despedaçado” (OP 02/2017), de Daniela Prieto (SPBsb).
Realizamos, ainda neste mês, reunião com as colegas Cecília Orsini (SBPSP), Liana Albernaz (SBPRJ) e Malu Gastal (SPBsb), que participarão da mesa do Observatório Psicanalítico no Congresso Brasileiro de Psicanálise que acontecerá em Campinas. Convidamos a todos para estarem conosco no dia 02/11 das 17 às 18h30 numa das salas do Congresso.
Concluímos esse editorial dando as boas-vindas às colegas Gizela Turkiewicz e Helena Cunha Di Ciero, ambas da SBPSP, que desde setembro passam a integrar a nossa Curadoria com sua sensibilidade, entusiasmo e criatividade. Agradecemos a Renata Zambonelli que ora se afasta da equipe e que muito contribuiu para as nossas realizações. Renata manterá sua colaboração nos programas do nosso podcast Mirante.
Um abraço a todos,
Equipe Curadoria
Beth Mori, Ana ValesKa Maia, Daniela Boianovsky, Gabriela Seben, Gizela Turkiewicz, Helena Cunha Di Ciero e Renata Zambonelli
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Imagem: A vaca Mimosa em cima de telhado na cidade de Estrela
(RS), após um alagamento – Prefeitura de Estrela
Categoria: Editorial
Palavras-chave: Observatório Psicanalítico, insegurança climática, aborto, redes sociais, extrema-direita, instituição psicanalítica
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