Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Sódepois 29
Setembro/22
Iniciamos o mês de setembro no nosso grupo de e-mails do OP com uma saudação do colega Hemerson Ari Mendes (SPPel) referindo-se ao nosso editorial do mês de agosto: “O Sódepois já é uma marca! Todo início de mês aguarda-se a ímpar cerzidura do que se apresentou no mês […] um novo texto que dialoga/reconvida para uma nova mirada pelo mês; como cereja em cima do bolo, fala das sementes destas que ao vento foram jogadas e que agora, de um Mirante (uma alusão ao nosso Podcast da Febrapsi), já se observam os novos brotos, e, quiçá, possam florescer em setembro.” Por associação, Hemerson nos envia letra da música intitulada “Quando setembro chegar”. O cantor, compositor e guitarrista brasileiro Tukley Ganzert, refere-se a necessária “esperança teimosa que insiste em nos acompanhar”.
As palavras da dupla Hemerson e Tukley permanecem em nossas mentes. Encaramos de peito aberto o mês de setembro com a esperança de que, enfim, no dia 2 de outubro, respiraríamos aliviados com o resultado final das eleições. A maioria da população mudaria o curso de nossa história triste iniciada em 2013 com a crise política na qual entramos, acumulada no início de 2020 com a dor da pandemia do Coronavírus. Perdemos quase 700 mil brasileiros pela Covid-19. Fomos às urnas, voltamos a “fazer barulho, escancarar janelas para que a luz depois de tantas sombras” retornasse depois de tudo que nos acometeu nesses últimos anos. E, com isso, o mês de setembro adentrou o mês de outubro. Adiamos a decisão final sobre nosso amanhã para o próximo dia 30. Nesse dia, desenlace eleitoral pela presidência do país para o período de 2023-2026, escolheremos entre o ex-presidente Lula e o atual governante do país que intenta sua reeleição. Nosso país? Segue dividido, fragmentado, no contexto de violência orquestrada pela macropolítica na pólis, “de nós contra eles”, com enormes dificuldades para produzir um comum na vida cotidiana.
Enquanto isso, olhamos para a “temperatura” do nosso “Observatório Psicanalítico Febrapsi”. No entrecruzamento dos tempos, o mês de setembro no OP caminhou a partir do grande sopro vital, ocorrido no dia 11 de agosto. Muitos brasileiros foram às ruas em defesa de nossa incipiente democracia para ouvir a leitura da carta em defesa da democracia divulgada no site da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). “A data escolhida é simbólica: marca a criação dos cursos de direito no Brasil e também uma passeata contra Fernando Collor de Mello, presidente do Brasil que sofreu impeachment em 1992. Foi também nas proximidades de 11 de agosto, mais precisamente no dia 8, que em 1977 ocorreu a leitura de um manifesto contra ditadura militar.” (G-1, em 11/8/22)
Os ensaios psicanalíticos e as conversas realizadas no Mirante sobre “Democracia e Psicanálise” com profissionais de outros campos do saber nos mostram que seguimos desejosos de um país justo e livre de privilégios históricos que produzem as desigualdades sociais. Nos três programas da temporada do nosso podcast sobre a relação da psicanálise com a democracia, nossos colegas Cecília Orsini e Eduardo Martins, da SBPSP e Ney Marinho (SBPRJ) conversaram, respectivamente, com o cientista político e professor da UnB, Luís Felipe Miguel, a advogada de DDHH, Débora Duprat e o filósofo do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), José Antônio Moroni. Nos três encontros, mediados pela colega Beth Mori (SPBsb), procuramos compreender como a democracia, enquanto valor cultural, pode regular os movimentos de homens e mulheres na pólis contemporânea, e sua intersecção com a psicanálise. Sem a democracia não há direito público. Estabelecida na Grécia Antiga e classificada por Aristóteles, em sua obra “Política”, como governo do povo (de muitos), a democracia se diferencia da monarquia (governo de um só) e da aristocracia (governo dos nobres). Em um governo democrático, todos os cidadãos possuem o mesmo estatuto e têm garantido o direito à participação política, por meio de eleições. Nessas, todas as vozes são escutadas. Mas não é suficiente votar, pois sabemos que, após o período eleitoral, muitas dos eleitos (na maioria, homens) seguem seus projetos políticos pessoais e, em seus rearranjos contínuos, não cumprem as pautas estabelecidas pela nossa Constituição Cidadã de 1988, conforme pudemos ouvir dos nossos convidados no Mirante.
Em “O que é democracia?” (OP 336/2022), Luís Carlos Menezes (SBPSP) escreve a partir da escuta do primeiro episódio da terceira temporada do Mirante, voltado para esse tema. Nesse ensaio dialógico, como um terceiro, Menezes entra na conversa realizada pela dupla Cecília e Luiz Felipe, afirmando: “se a democracia é um processo, ouvi-los foi vê-la acontecendo, sendo praticada com lucidez, sensibilidade e inteligência. […] Acompanhei com muita sintonia com vocês e, na sua fala (Cecilia), destacou-se para mim a crítica contundente à análise regulamentada na formação de novos psicanalistas e a maneira como você usou, com muita pertinência e sagacidade, a concepção psicanalítica do desamparo em diferentes frontes sociais que vêm avançando em nossas sociedades na Europa, nos EEUU e na América Latina: o já secular combate tanto pelos direitos civis das mulheres, como pelo respeito devido a elas e à sua sexualidade nos costumes, nas mentalidades; as muitas dimensões do racismo que vamos descobrindo à medida que avançamos; o reconhecimento social da diversidade de orientações sexuais e de identidade de gênero e… a grande questão das imensas e terríveis desigualdades sociais resultantes da divisão do trabalho e dos ganhos.”
No dia 7 de setembro, dia do bicentenário de independência do Brasil, ouvimos o atual incumbente, a partir de seu palanque eleitoral, berrar em alto e bom tom que é um “imbrochável”. Nós, psicanalistas, sabemos dessa impossibilidade para a vida humana, mas foi Celso Gutfreind (SBPdePA), no seu ensaio intitulado “Brocháveis” (OP-
Sobre esse “Eu ensandecido”, que grita que é senhor da própria morada, solicitamos à Manola Vidal (membro convidado da SBPRJ) que nos ajudasse a pensar sobre a última escrita da psicanalista francesa Elizabeth Roudinesco “O eu soberano: Ensaios sobre as derivas identitárias”, que causou certo estranhamento em muitos de nós psicanalistas. Em “Elizabeth Roudinesco e o (im) possível diálogo entre a psicanálise e os estudos de gênero” (OP 338/2022), Manola nos alerta que: “Mesmo não sendo gênero um conceito trabalhado no corpo da teoria psicanalítica, encontra-se na clínica de forma a provocar um posicionamento que problematiza a pretensão de uma neutralidade e coloque o psicanalista nas questões de seu tempo. O conceito da identidade igualmente não possui na psicanálise uma existência própria, ou seja, não possui um aporte teórico, pois o sujeito da psicanálise não existe a priori, está sempre aberto a novas identificações, é sempre a posteriori que se constitui.” Concordamos com Rodrigo Lage (SBPSP) ao comentar sua satisfação pela autora ter “superado o ‘constrangimento’ que permitiu a construção de um ‘posicionamento’”. A autora “nos traz um texto denso e aportes para uma reflexão que vai se esboçando e convocando a psicanálise de maneira incontornável. As relações propostas com os debates relacionados e suas repercussões no espaço público, na esfera social e política, são de extrema importância.” Carolina Freitas (SBPdePA) também concorda que o ensaio de Manola é de “altíssimo nível, tão bem escrito quanto o livro de onde partem teus pontuais, precisas e claras reflexões.” A comentadora se diz “uma entusiasta desta psicanálise mais social e aberta a olhar os processos como um rizoma, a partir de fluxos e não da raiz.” E agradece à ensaísta incluindo “talvez movida pelos meus desejos conscientes de estudo, o tema das migrações tão bem abordado por ela (Roudinesco) no livro, inclusive usando sua própria posição de ser livre de uma raiz totalitária e sim, um ser construído pela diversidade interconectável e fluida que reflete em seu ser e escrita.”
Nós da Curadoria, assinamos o texto publicado como OP 339/2022 intitulado “200 Anos depois. Como estamos? A descolonização latino-americana no Observatório Psicanalítico Febrapsi”, elaborado como estímulo aos convidados da Conversatória do OP no XXXIV Congresso da FEPAL, realizada no dia 22 de setembro. Propusemos aos colegas psicanalistas que pensassem sobre o bicentenário de independência de países de nossa América Latina “que aconteceu mais ou menos na mesma época, relacionadas a contextos similares […] após séculos de colonização e exploração europeia, caracterizadas pela submissão e dizimação dos povos originários (maias, astecas, incas, charruás, tupis, tapuias etc.) e pela escravização dos africanos, […] com a finalidade de obter mão de obra para a extração de riquezas naturais da colônia para os grandes centros dos reinos europeus. O chamado Mundo Novo, assim, será marcado pelo latifúndio monocultor e exportador de base escravocrata”.
Dentre os convidados, Dora Tognolli (SBPSP), psicanalista brasileira convidada por nós para participar dessa Mesa do OP, nos brindou com seu texto “Triste… Brasil: 200 anos depois” (OP 340/2022), publicado no último dia do mês de setembro, véspera das eleições no nosso país. Neste ensaio sobre nossa frágil democracia, Dora nos deixou estas perguntas: “E agora, próximos de eleições que nos inquietam, nos perguntamos sobre a fragilidade da democracia brasileira: cabe a provocação, democracia para quem? Cercados de ideologias que hoje ocupam o poder, e querem permanecer, onde alguns são vistos como mais humanos que outros, mais homens de bem que outros, onde frases recentes nos dizem ‘direitos humanos para humanos direitos’?” Luiz Meyer (SBPSP) comenta: “Dora, teu texto melancólico , realista, evocativo põe em xeque o ufanismo que vem escondendo nossas mazelas e aponta para os interesses que visam mantê-las ocultas. Quantos traficantes (não só de escravos) ainda hoje obtêm escusos favores financiando o rei.”
Prosseguimos, acompanhadas de Paulo Freire, com esperança. Em seu livro “Pedagogia do Oprimido, nosso educador brasileiro nos diz: “Num país como o Brasil, manter a esperança viva é em si um ato revolucionário. […] Movo-me na esperança enquanto luto e se luto com esperança, espero. […] Não sou esperançoso por pura teimosia, mas por imperativo existencial e histórico. […] Pensar que a esperança sozinha transforma o mundo e atuar movido por tal ingenuidade é um modo excelente de tombar na desesperança, no pessimismo, no fatalismo. Mas, prescindir da esperança na luta para melhorar o mundo, como se a luta se pudesse reduzir a atos calculados apenas, à pura cientificidade, é frívola ilusão. Prescindir da esperança que se funda também na verdade como qualidade ética da luta é negar a ela um dos seus suportes fundamentais. O essencial, como digo mais adiante no corpo desta Pedagogia da esperança, é que ela, enquanto necessidade ontológica, precisa de ancorar-se na prática. Enquanto necessidade ontológica a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica. É por isso que não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera pura, que vira, assim, espera vã.” (Paulo Freire. Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2003.)
Essas palavras nos auxiliam a pensar sobre a função de nosso OP, para nós psicanalistas da FEBRAPSI: uma grupalidade psicanalítica que tem feito acontecer a esperança! Implicados com a saúde mental, que somos, sabemos que o sofrimento psíquico é produzido na relação com o outro, daí o reconhecimento do valor da dimensão sociopolítica neste espaço do Observatório. Pensamos, escrevemos, conversarmos, com a intenção de elaborarmos nossas inquietações e intervirmos, como clínicos, na cultura brasileira.
Por último, lembramos vocês que estamos presentes no Instagram para divulgar nossos ensaios e os programas do Mirante. Nosso perfil é @observatorio_psicanalitico. Além de nossa produção inédita mensal, postamos ensaios escritos anteriormente por eles se encontrarem em sintonia com os acontecimentos atuais. Neste mês foram republicados:
OP 165/2020 Cala a boca não morreu, mas #EuNaoMeCalo, de Cláudia Carneiro (SPBsb) sobre violência, autoritarismo e liberdade de expressão, considerando as ameaças sofridas pelo escritor Julian Fuks, após publicação de sua crônica “Precisa-se de terrorista capaz de um ato sutil que transforme a história”.
OP 123/2019 Bacurau, de Rosane Müller Costa (SPFor). O filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho, lançado em 2019, se passa no sertão nordestino. Traz uma importante crítica social sobre o contexto político e sociocultural brasileiro.
OP 93/2019 O Cinema, a Psicanálise e o Oscar, de Lucas Santos (SBPMG), sobre psicanálise e cinema. Postamos o ensaio em homenagem ao cineasta Jean-Luc Godard, ícone do cinema moderno e um dos expoentes da nouvelle vague francesa, que aos 91 anos nos deixou no dia 13 de setembro.
OP 254/2021 O imperativo categórico é Fora Bolsonaro, de Valton de Miranda Leitão (SPFor).
OP 127/2019 Coringa. O inevitável? De Marielle Kellermann Barbosa (SBPSP), sobre violência de Estado, violência psíquica e suas consequências.
OP 134/2019 O eterno retorno da intolerância brasileira, de Lina Schlachter Castro (SPFor) sobre a intolerância e democracia no Brasil.
Seguimos,
Equipe de Curadoria,
Beth Mori, Ana Valeska Maia, Daniela Boianovsky, Rafaela Degani e Renata Zambonelli
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Categoria: Editorial
Palavras-chave: Observatório Psicanalítico, Psicanálise, Democracia, Elizabeth Roudinesco, Eleições
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