Observatório Psicanalítico Editorial -outubro/2025

 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Sódepois 66

Outubro/2025

 O ser humano tem a capacidade de enxergar entre sete e dez milhões de cores, enquanto a língua portuguesa possui cerca de 370 mil palavras, das quais apenas 253 são destinadas a nomear cores. Como bem sabemos, a percepção humana ultrapassa a linguagem, e nossas tentativas de tradução são sempre incompletas. Outubro possui sete letras e 31 dias, mas alguém sabe quantas cores ele tem? Podemos passear pelos prédios públicos iluminados de rosa, parte das campanhas de combate ao câncer de mama, sobrevoar o azul do manto da padroeira do Brasil e aterrissar no preto e laranja das festas de Halloween — tradição importada das terras do Norte, mas talvez não seja suficiente.

Se qualquer editor de texto é capaz de calcular facilmente o número de palavras de um texto, será que nós conseguimos contabilizar suas cores? No texto “Flotilha Sumud Global” (OP 617/2025), Liana Albernaz de Melo Bastos (SBPRJ) apresenta-nos seu sobrinho Miguel, um dos quinhentos ativistas que partiram nas cinquenta e uma embarcações da Flotilha Sumud Global com a intenção de chegar a Gaza levando ajuda humanitária aos palestinos: água, comida e medicamentos. Tendo o azul como fundo, o preto, branco, vermelho e verde das bandeiras palestinas tornaram-se, juntos, símbolo da luta pela paz, pela liberdade e pela dignidade humana. 

O mesmo fundo azul serviu de cenário, no entanto, para o ataque israelense com drones que lançavam substâncias tóxicas e canhões de jato d’água. Ativistas foram presos pela polícia israelense. Com o passar do tempo, soubemos que Miguel estava entre os 13 brasileiros detidos na prisão de Ktziót. O pior pesadelo de uma família: não ter notícias de um ente querido. Liana, em meio à dor e à preocupação com o destino do sobrinho — que só voltou para casa dias depois de viver momentos difíceis —, aproveita para fazer um apelo: “Sem uma Palestina livre, soberana e autônoma, e sem a retomada de um governo democrático em Israel, não haverá paz nem dignidade”.

Felizmente, após cessar-fogo assinado no Egito em 09 de outubro, tivemos a libertação de reféns israelenses pelo Hamas, e de prisioneiros palestinos por Israel. Cenas de reencontro após anos de dor e incerteza correram o mundo, alimentando a esperança de uma resolução para o conflito.

Do outro lado do globo, a bandeira daquela terra do Norte — azul, vermelha e branca — inspira os uniformes dos principais super-heróis da cultura pop, aqueles que defendem seu império pela força da violência. Por sorte, existem outras cores e outras formas de heroísmo: uniformes em tons verdes, terrosos ou camuflados também podem vestir super-heróis. No texto “A Ética do Cuidado: Um Tributo a Jane Goodall” (OP 618/2025), Malu Gastal (SPBsb) traça sua trajetória pessoal, iniciada na infância, quando via pela televisão os grandes exploradores — homens da ciência que desbravaram mares, matas e céus —, seus super-heróis, que a inspiraram a buscar a Biologia. Já na faculdade, descobre que seus heróis também eram heroínas: mulheres como Nise da Silveira e Jane Goodall, que conciliavam ciência e compaixão. “Elas me lançaram em direção à psicanálise, com seu interesse pela mente dos humanos e de nossos primos, caminho que foi se construindo primeiro como analisanda, depois como analista”.

A bela história de Jane Goodall, renomada primatologista que nos deixou em 1º de outubro, aos 91 anos, recorda-nos que a ciência pode ser ao mesmo tempo metódica e terna — e que rigor científico e atuação política não são incompatíveis. Além disso, o texto da Malu nos lembra que mesmo nós, animais adultos, ainda podemos aprender com nossos heróis e heroínas: “E, mesmo em tempos de tanta destruição e ódio, mantenho viva a esperança de que, inspirados pela trajetória de Jane Goodall, possamos — cada um à sua maneira — fincar raízes profundas de ética e amor pela Terra e por todos os seres que nela habitam, e que dessas raízes brotem gestos de cuidado, respeito e compromisso com a nossa casa comum.”

E a Psicanálise tem cor? Maria Helena Ferreira dos Santos (SBPRP), em “Ações Afirmativas: O entreaberto aos espaços psicanalíticos?” (OP 619/2025), tece uma narrativa densa e sensível sobre o percurso de uma mulher negra em formação psicanalítica a partir de uma política de cotas, expondo a solidão e o estranhamento de quem ocupa um espaço até então “monocromático”. Ao rememorar sua trajetória, ela confessa o peso de “escrever acerca deste percurso, neste lugar de pessoa negra, sem recursos financeiros para cá estar, e ao mesmo tempo, poder estar”.

A autora transforma sua experiência em reflexão ética e política, questionando se o campo analítico realmente se dispõe a acolher a diferença — não apenas em discurso, mas em estrutura. É um caminho que se faz caminhando, já que tais iniciativas ainda são recentes e, infelizmente, pontuais em nossas sociedades. Daí sua pergunta: “Qual o impacto destes corpos excluídos nestes ambientes, tanto para aqueles que os possuem quanto para os que os recebem?” Enquanto reflete, busca forças nas rodas formadas pelos ancestrais, em “séculos de histórias contidas na linguagem típica de um tempo de outrora, sangrento, doloroso, todavia entranhado de conhecimentos atemporais do tempo, da natureza, deles e de nós”.

Assim como duas cores misturadas formam uma nova tonalidade, a Psicanálise, quando se entrelaça com outros saberes, também cria algo novo. Mariano Horenstein (APC), em “Conversa Infinita” (OP 620/2025), apresenta seu livro homônimo — agora em edição brasileira pela editora Quina, com tradução de Julián Fuks. Trata-se do registro de um projeto de entrevistas com artistas, escritores, pensadores, cientistas e arquitetos de nosso tempo que, de algum modo, não seriam quem são sem a Psicanálise. Ele traça como as entrevistas se pretendem “mestiças” — nem jornalísticas nem puramente clínicas — e que cada encontro ocorre em “outro lugar”, heterotópico, à semelhança da própria sessão psicanalítica. Ele também problematiza a ideia de pureza disciplinar e propõe que a conversa analítica, entendida como “a melhor conversa de uma vida”, torne-se campo de fusão entre línguas, disciplinas e seres — um convite à escuta que transcende a técnica e se abre ao mundo. 

Ainda ecoando os projetos premiados no último Congresso da IPA, realizado em agosto deste ano em Portugal, Claudia Janete Boutros de Carvalho e Luiz Tadeu Pessutto (GEP São José do Rio Preto), em “Projeto Ninho do Bebê – Atendimento à população vulnerável de gestantes e pais com seus bebês de 0 a 3 anos. Um afeto que exige emergência – Prêmio IPA – Saúde”, (OP 621/2025), nos convidam a conhecer essa iniciativa nascida em 2017 para atender bebês e suas famílias em situação de risco, com uma equipe multidisciplinar. “Somos um projeto social sem fins lucrativos, com 90% dos profissionais trabalhando voluntariamente, e os pacientes são atendidos gratuitamente.” O trabalho se estrutura em três eixos — prevenção, tratamento e promoção de conhecimento — e busca sensibilizar outros serviços para a “primeiríssima infância, com o olhar voltado ao apoio, à sustentação do vínculo e ao afeto genuíno da relação mãe/pai/cuidador e bebê — sujeito de vulnerabilidade pelo próprio tempo de vida”.

Caminhando para o fim do mês, chegamos a Gramado/RS, que recebeu, entre os dias 22 e 25 de outubro, o 30º Congresso Brasileiro de Psicanálise, que teve como tema Sexualidade: o Tumulto das Diferenças. Existe algo mais furta-cor que a sexualidade? Falando em cores, Helena Cunha Di Ciero (SBPSP) nos lembra que “Erotizar é colorir” (OP 622/2025), e com palavras nos faz imaginar os coloridos encontros que lá tiveram lugar: “Falamos com mais liberdade sobre machismo, feminismo, crise climática, racismo e desejos, ideias que desabrochavam numa Gramado verde e iluminada pela chegada do Natal. Uma nova promessa de uma psicanálise mais aberta, mais condizente com a verdade dos tempos atuais, que se debruça tanto nos tumultos, quanto na criatividade de Eros”.   

O Observatório Psicanalítico esteve presente por meio da participação de suas curadoras em diferentes espaços — mesas, cursos e lançamentos de livros. Destaque para a mesa-redonda específica do OP, intitulada “Corpos afetados: o sexual na polis”, coordenada por Gabriela Seben (SBPdePA) e que contou com as psicanalistas Ana Paula Terra Machado (SBPdePA), Berta Hoffmann Azevedo (SBPSP) e Lúcia Maria de Almeida Palazzo (SBPRJ) que participou virtualmente. 

Poucos dias depois, em 28 de outubro, o Governo do Rio de Janeiro deflagrou uma “megaoperação” contra o Comando Vermelho nos complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte da capital fluminense. A ação, que mobilizou cerca de 2.500 agentes das forças estaduais de segurança, deixou um saldo de 132 mortos — a mais letal da história. Do furta-cor de Eros passamos ao preto e vermelho da Necropolítica, num novo capítulo da barbárie. A Praça da Penha amanheceu com uma fila de 64 corpos estendidos sob uma lona: cinquenta tons de preto, corpos alvejados e mutilados, tingidos de vermelho-sangue. 

Logo após o acontecido, Wania Cidade (SBPRJ), em seu texto-manifesto-grito “Uma cidade sem lei” (OP 623/2025), denuncia: “Não há lei nesta terra dividida, na qual somente uma parcela da sociedade tem direito à vida e à dignidade humana”. Em tom contundente, ela critica a política de segurança que assume a pena de morte como solução e convoca os psicanalistas ao compromisso ético: “Os psicanalistas têm o compromisso ético de se manifestar ante o acontecido. Não podemos silenciar, outra vez, perante tamanho descaso com os nossos semelhantes. Precisamos nos pronunciar, repudiar veementemente a barbárie.”

Seu chamado reverberou. Desde o dia 30 de outubro, diversas Sociedades Federadas, a ABC, a FEBRAPSI e a FEPAL — além de inúmeras manifestações individuais — expressaram repúdio, pesar e consternação diante de tamanha tragédia, numa tentativa de elaboração coletiva: colocar em palavras o indizível. 

Mas o asfalto que recebe o sangue dos corpos alvejados, também pode ser morada do vermelho das flores que insistem em nascer e crescer em meio ao cinza das ruas. A imagem do poema de Drummond trazido por Silvana Barros (SPFOR) em “A flor e o horror: a infância que o Brasil não protege” (OP 624/2025) nos lembra das crianças que não só presenciaram a tragédia, mas que também ajudaram recolher os corpos dos mortos. Violência física e psíquica que impede o brincar e o brincar, instalando o desamparo. “A flor de Drummond é metáfora de crianças que resistem nas bordas da cidade, que insistem em brincar mesmo quando tudo à sua volta anuncia a morte.” Sua fala nos convoca ao cuidado, mas um cuidado implicado, que não desvia o olhar, que não se acostuma com cenas como essa, e que segue sendo resistência ao desamparo social.

Nós, da Curadoria, também nos solidarizamos, e seguimos transformando o luto em movimento, aproximando nossa escrita vagabunda dos que velam pela alegria do mundo, como nos ensina Caetano Veloso em seu combate aos Podres Poderes: 

“Enquanto os homens exercem seus podres poderes

Morrer e matar de fome, de raiva e de sede

São tantas vezes gestos naturais

Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo

Daqueles que velam pela alegria do mundo

Indo mais fundo, tins e bens e tais.”

Palavras-chave: Eros, Tânatos, Cores, Guerra, Flotilha, 30o. Congresso Brasileiro de Psicanálise 

Imagem:  Imagem: Pinturas rupestres na Serra da Capivara (PI). Foto de Beth Mori (2025)

Curadoras:

Beth Mori (SPBsb), coordenadora 

Ana Carolina Alcici (SPRJ)

Ana Valeska Maia (SPFOR)

Cris Takata (SBPSP)

Gabriela Seben (SBPdePA)

Giuliana Chiapin (SBPdePA) 

Lina Schlachter (SPFOR)

Categoria: Editorial

Nota da Curadoria: O Observatório Psicanalítico é um espaço institucional da Federação Brasileira de Psicanálise dedicado à escuta da pluralidade e à livre expressão do pensamento de psicanalistas. Ao submeter textos, os autores declaram a originalidade de sua produção, o respeito à legislação vigente e o compromisso com a ética e a civilidade no debate público e científico. Assim, os ensaios são de responsabilidade exclusiva de seus autores, o que não implica endosso ou concordância por parte do OP e da Febrapsi.

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Categoria: Editoriais
Tags: 30o. Congresso Brasileiro de Psicanálise | Cores | Eros | Flotilha | guerra | Tânatos
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