Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Sódepois 38 – Junho de 2023
“O país que não pensa no futuro, está condenado a adormecer no passado”, nos lembra a historiadora e antropóloga Lilia Schwarz. E no último dia do mês de junho, o futuro do Brasil agradeceu: após longo processo de votação, o TSE decidiu, por 5 votos a 2, pela inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro, que ficará impedido de se candidatar a cargos públicos por 8 anos. A decisão ocorre seis meses após a saída de Bolsonaro da presidência.
Ao longo de seu mandato, Bolsonaro desestabilizou o sistema eleitoral ao divulgar diversas notícias falsas em suas lives semanais, levantando suspeitas sobre sua confiabilidade. A constatação de que houve uso indevido dos meios de comunicação e abuso de poder político levou à tal decisão.
Não restam dúvidas de que o reconhecimento desses crimes é imprescindível para o fortalecimento de nosso sistema político e democrático, capenga após uma sucessão de abalos sofridos nos últimos anos, e que culminou em vertiginosa crise. O presidente que tanto elogiou a ditadura militar, que debochou dos milhares de mortos pela covid, que declarou-se “imbrochável”, que fez declarações misóginas e de incentivo ao armamento da população, finalmente foi punido. No país da impunidade, uma decisão como essa é fundamental. Mas sabemos que ainda é pouco, é preciso julgar outros diversos crimes praticados ao longo de seu desastroso governo.
O mal não se extirpa com a punição de Bolsonaro. Seu legado ganhou força. O bolsonarismo é ainda maior do que seu idealizador. Em um país campeão em desigualdade social e violência, onde a prática do racismo e da discriminação social e de gênero é alarmante, os discursos de extrema direita ganharam espaço durante a gestão de Bolsonaro – movimento crescente que se observa também em diversos países pelo mundo.
Diante deste cenário, temos pela frente um futuro imprevisível. Desde o início de nossa curta história de pouco mais de cinco séculos, já era patente, na exploração de nossas terras e recursos, a dificuldade em zelar pelo bem comum, característica fixada em nossas raízes. Último país a abolir a escravidão no Ocidente, o Brasil ainda convive com formas perversas de racismo, preconceito às diversidades e profunda desigualdade. Longe da imagem de pacifismo e cordialidade, somos uma nação que acomoda uma cultura assimétrica e violenta, cujo idioma social é de difícil tradução.
Somos um país ainda comandado pelo poder das elites e que, como já dito por Tom Jobim, “não é para principiantes”.
Movidas pela necessidade de compreender essas articulações políticas e sociais no Brasil e no mundo, convidamos o filósofo e psicanalista Vladimir Safatle e o psicanalista Luís Carlos Menezes para dialogar no episódio 24 do Mirante, que encerra a temporada “Democracia”. Nesses tempos difíceis em que vivemos, onde crises de toda ordem apontam para uma destrutividade desenfreada, é fundamental ampliar o debate sobre o cenário atual, marcado por guerras, crise migratória, mudanças climáticas, ameaça às democracias, desigualdade econômica, violência. Seremos capazes de interromper esse movimento e abrir novos caminhos que acenem para mudanças nestas realidades? É possível instituir e zelar pelo bem comum? Quais os limites da política? Como a psicanálise pode contribuir neste debate?
Indagados sobre essas questões, nossos debatedores deslizaram por diversos temas, começando com um retrospecto sobre maio de 68 e os anos que se seguiram após este marco em nossa história. A importância dos movimentos sociais também foi abordada, a exemplo da luta feminista na Argentina que trouxe importantes conquistas, dentre elas o direito ao aborto. Em nosso grupo de e-mails, a conversa suscitou muitos comentários. Cecília Orsini (SBPSP) indaga: “Como é possível uma psicanálise viva e participativa, que sustenta a indeterminação, a transição para uma nova episteme (que inclua, por exemplo, o antirracismo e as perspectivas trans), sustentar aquilo que ainda aguarda por um nome?”. Leopold Nosek (SBPSP) observa que no episódio “podemos ver dois horizontes muito diversos com pontos de convergência”. Os diversos elogios ao programa nos fizeram refletir sobre a verdadeira relevância desses temas, inquietantes e ao mesmo tempo fundamentais. Ao menos em parte, nos ajudou a elaborar possíveis formas de compreensão sobre os fenômenos complexos que perpassam os dilemas atuais de nossa cultura.
Seguindo nesta mesma direção, o primeiro ensaio publicado no mês de junho “A psicanálise diante de um mundo desumanizado” (OP 402/2023), de José Alberto Zusman (SPRJ), nos trouxe uma perspectiva sobre a entrada da psicanálise nos debates políticos que “perturbam, horrorizam e pervertem os pilares do nosso processo civilizatório e humano”. O autor relembra que os psicanalistas estiveram, durante muito tempo, afastados dessas discussões, em nome de uma certa ideia de neutralidade. Atualmente, não é possível nos mantermos apartados de tais discussões, especialmente quando, cada vez mais, somos permeados pela violência e a intolerância, cujas manifestações observamos a olhos nus dentro e fora de nossos consultórios. Zusman opina que a psicanálise nunca foi tão necessária, e que cabe a nós, psicanalistas, não nos abstermos de indignação frente à barbárie.
Na sequência, publicamos o ensaio da psicanalista Luciana Saddi (SBPSP e fundadora do Grupo Corpo e Cultura) e da nutricionista Natália Vignoli (Grupo Corpo e Cultura) intitulado “Novas drogas pra emagrecer: mentalidade de dieta e o controle social do corpo” (OP 403/2023). Trazendo uma temática bastante relevante e atual, as autoras abordam a relação que temos com a comida, padrão que vem se modificando nas últimas décadas. A partir da ideia de que há na cultura uma “mentalidade de dieta”, apontam para o mal-estar que acompanha a experiência com a alimentação e com o corpo. Essas manifestações devem ser investigadas pela psicanálise, visto que tanto a gordura em excesso quanto a fobia à gordura ou a exigência por um padrão magro em nossa sociedade, são motivos de intenso sofrimento.
No ensaio “Carta a um jovem psicanalista” (OP 404/2023), Vanessa Figueiredo Corrêa (SBPSP) escreve, com criatividade, sobre a experiência da formação. Inspirada nas correspondências de Freud, a carta, escrita de forma bem-humorada, nos convoca a um debate sério, no qual Vanessa questiona regras que podem ser “violentas e colonizadoras” nas instituições psicanalíticas. A autora ressalta que é preciso manter uma certa “ingenuidade ambiciosa” para se embrenhar por uma formação tão árdua, longa e dispendiosa: “a minha ideia sobre formação é essa: você estuda muito, faz muita análise, gasta tempo, dinheiro, aprende, esquece, passa raiva, ama sobretudo, vive nascimentos e mortes, chora, cria filhos. É a vida e na melhor das hipóteses você adquire não o fogo, mas a habilidade de produzir faíscas ao ouvir, escrever, falar (…)”. Mas, no fim das contas, segundo Vanessa, “tem beleza aí”.
Com temática semelhante à abordada por Vanessa, o texto de Ricardo Trinca (SBPSP) versou sobre “A psicanálise em (de)formação e a formação que não se forma (OP 406/2023). O ponto de vista do autor é de que uma formação é um processo interminável que não poderia se dar sem tensão. Há uma busca contínua por autonomia e liberdade de pensar, como forma de “abarcar o inabarcável ou conhecer algo do desconhecido”, e é por isso que a psicanálise é uma constante (de)formação, o que implica em uma mudança de perspectiva acerca da ideia de que a formação é um processo finito. Ao contrário, a psicanálise é “incompleta e indeterminada, e caminha para a necessária descoberta de uma epistemologia que inclua o antirracismo, as perspectivas trans e a luta contra o autoritarismo”. Deste modo, a psicanálise em (de)formação nos convoca a exercer um pensamento crítico, criativo, que nos ajude a suportar o inacabado de uma formação.
Pensando em como estão se desenvolvendo nossas crianças no mundo atual, publicamos o ensaio “E os bebês? O que a psicanálise tem a dizer sobre as intervenções no tempo inaugural do psiquismo” (OP 405/2023), escrito pela Comissão da Infância e Adolescência da Febrapsi. A psicanálise, desde seu início, com Freud, ocupou-se de teorizar sobre os tempos primordiais do psiquismo. Com a expansão teórica e técnica da psicanálise e a ampliação dos limites da analisabilidade, abriu-se um espaço privilegiado para pensar nesses tempos inaugurais. Segundo os autores, “a psicanálise tem mostrado que não há como compreender a mente adulta sem levar em conta a dinâmica e as inúmeras vicissitudes contidas nas trocas afetivas de relação mãe-bebê”. Sendo assim, a psicanálise do adulto não estaria descolada dessas primeiras vivências apreendidas neste vínculo primordial, já que o mesmo deixa marcas profundas na mente. Por esta razão, os autores enfatizam a relevância das intervenções precoces em bebês, com visível impacto no desenvolvimento posterior.
Relembramos também em nosso instagram, como #tbt, os textos: “LGBTTQ+ Etecetera: da Consolação à República” (OP 110/2019) de Eduardo de São Thiago Martins (SBPSP), e “O imperativo categórico é fora Bolsonaro” (OP 254/2021), de Valton de Miranda Leitão (SPFOR). Nas terças culturais, publicamos os ensaios: “Sobre livros, arqueologias e o trabalho da memória” (OP 120/2019), de Alexandre Socha (SBPSP), e “Arte e Psicanálise” (OP 27/2017), de Silvana Rea (SBPSP).
Finalizamos o mês de junho, portanto, embaladas de otimismo frente à decisão do TSE sobre a inelegibilidade de Bolsonaro, cientes de que ainda há um longo caminho a ser percorrido. Envolvidas por um sentimento de justiça, depois de assistirmos a tantas atrocidades cometidas pelo ex-presidente, experimentamos um salutar e necessário alívio, que nos permite tomar fôlego para encarar novas lutas. Impossível, neste momento, não entoar a canção que nos envolveu durante todo o penoso processo eleitoral que elegeu Lula presidente, derrotando aquele que, de “imbrochável”, passou a inelegível em poucos meses:
“Apesar de você, amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver, a manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar, vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar, nosso coro a cantar
Apesar de você, amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal, etecetera e tal
Lá lá lá lá laiáa”
(Apesar de você – Chico Buarque)
Esperamos que desfrutem de nossos textos e que possam comentá-los em nossas redes sociais.
Um fraterno abraço da equipe de curadoria,
Beth Mori (SPBSB), Ana Valeska Maia (SPFOR), Daniela Boianovsky (SBPSB), Gabriela Seben (SBPdePA) e Renata Zambonelli (SBPSP)
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: editorial
Palavras-chave: Observatório Psicanalítico, psicanálise, política, democracia, inelegível
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