Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Sódepois 26
Junho/22
Escrever é poder limitar, em determinado território, o enquadre daquilo que pôde ser dito. É fazer concessões, deixar de fora o que ainda pulsa e transborda para além do continente gramatical e da nossa capacidade de simbolização. Ao mesmo tempo que é frustrante ter de abandonar o sangue que ainda escorre da carne por não ter havido versos suficientes para traduzi-lo, é um alívio – mesmo com tantas arestas perdidas pelo caminho – quando encontramos, seja como escritores ou leitores, o porto/texto possível onde atracar nosso emaranhado de angústia e aflição errante. Este Observatório é celeiro de palavras que generosamente nos são enviadas pelos nossos colegas. Eles nos emprestam seu talento para que possamos usá-lo como porta-voz de nossas angústias, nossas dores e também de nossa esperança.
Este foi um mês de extrema violência, de feridas que se abriram ainda mais em nosso corpo cidadão, já tão doído, vítima e testemunha dos ataques crescentes à dignidade humana. Uma menina de onze anos é submetida a uma sequência de horrores quando a ela é negado o direito à interrupção de uma gestação provocada por estupro. Uma mulher é espancada por um colega de trabalho. Um indigenista e um jornalista, comprometidos com a defesa da causa indígena, são brutalmente assassinados por exercerem o seu trabalho. Tragédias que se repetem e que são emblemáticas da dor que nos abate diariamente em nosso país. A misoginia, o racismo, a LGBTQIA+fobia e o genocídio dos povos indígenas têm sido estimulados pela palavra e pelo ato do chefe do Executivo; somos desafiados na luta por nossos direitos fundamentais, sentindo-nos, muitas vezes, impotentes, mas seguimos determinados a puxar o freio da barbárie que teima querer se instalar em nosso território.
Bruno Pereira e Dom Philips foram covardemente eliminados. O que vimos foi a expressão do terror acompanhada pelo descaso do governo federal e sua política genocida. Em nosso quinteto de curadoras, procurávamos por palavras onde pudéssemos escoar aquela ferida que sangrava e nos emudecia. No poema “Réquiem para um país” (OP 321/2022), Celso Gutfriend (SBPdePA) dá voz à nossa dor e à nossa indignação, à nossa revolta diante do “reino da milícia”, “do deixa disso”, da conhecida pereira que daqui pra frente não trará mais frutos, do “reino demente do garimpo ilegal” que invade nossa floresta, fere e mata nossos povos originários. Deixa-nos sem fôlego quando, em seus versos finais, fala-nos de um reino onde não se “cava o bem”, “só o mal” …
Helena Cunha Di Ciero (SBPSP), ao compartilhar seu texto-celeiro – “A PSICANÁLISE COMO CAMPO DE CENTEIO (OP 323/2022) – oferece-nos representação à nossa angústia diante do suicídio de uma jovem de 13 anos e do abandono que nossos adolescentes experimentam, “uma geração à deriva, que num clique consegue encontrar na internet conteúdos perigosos sobre assuntos potencialmente fatais”. Um texto belo e impactante, incessante na busca por palavras “até que aquilo que estava oculto se revele em sua inteireza…”, “para que saibamos que enquanto tantas vozes que padecem não forem ouvidas e levadas em consideração: o futuro é nebuloso e os corpos gritarão”. Helena aponta o potencial da escuta analítica e a força de sua intervenção para que nossos jovens não caiam em um abismo de dor e desamparo.
Em “Ideologia de gênero?” (OP 319/2022), Liana Albernaz de Melo Bastos (SBPRJ) desnuda o grau de nossa intolerância ao revelar a vergonhosa posição do país como aquele “que mais mata pessoas trans no mundo”, fruto de uma política de “extermínio de tudo que não se ajusta a uma forma única e totalitária de pensamento”. Ressalta, ainda, que “desde as teorias feministas sabemos que gênero é uma construção social, que não se confunde com o corpo biológico. Mas para a manutenção de uma dada ordem e estabilidade institucionais…os corpos precisam ser controlados, domesticados e, se escapam, exterminados”. Liana nos traz a força “trans-formadora” da arte – através da discussão sobre o filme chileno “Uma mulher fantástica” – que, em seu poder de colocar “em xeque as formas totalitárias” de pensamento, abre espaços para o exercício de democracia.
Na esteira que também nos leva à potência da arte, Carolina Freitas (SBPdePA) traz o texto “A ARTE É UMA SÓ” (OP 322/2022), associando-a à construção da história, da identidade cultural de um povo, ao próprio reconhecimento da alteridade, com Freud desenvolvendo “a arte da escuta, através da narrativa de associações livres…no encontro com o outro…”. “Por isso”, continua a autora, “o considero um modernista que rompeu com a academia e lutou pela liberdade de vir a ser sujeito de seu próprio destino e arte. A arte da Psicanálise. A arte do encontro”. É na defesa do direito à singularidade que podemos alcançar, conforme depreendemos da escrita de Carolina, a derrubada de fronteiras para fazer da arte um território único de criatividade e de respeito às diferenças.
A arte segue presente em nossas publicações de junho na homenagem prestada por Maria Teresa Lopes (SBPRJ) ao artista consagrado Milton Gonçalves, com o ensaio “Ancestralizar” (OP 324/2022). A autora destaca a luta travada, como ativista do movimento negro, para que ele e outros(as) artistas negros(as) fossem reconhecidos em sua alteridade e talento artístico: “Esse era Milton Gonçalves, um artista enorme, carismático, que no início de carreira sofreu pela cor que carregava e mesmo assim, lutou e conseguiu se posicionar frente à opressão sofrida pela população negra neste país tão racista como o Brasil”. Acompanhamos Teresa nessa homenagem, engrossando o coro que diz: “Milton Gonçalves, PRESENTE!!!”
No país em que a segurança alimentar retrocedeu, em dois anos de pandemia, a patamares de três décadas atrás, com o índice atual de 33 milhões de pessoas que não têm o que comer, o encontro do homem mais rico do mundo, Elon Musk, “com nosso inconfundível inquilino do Planalto”, chamou a atenção de Julio Hirschhorn Gheller (SPBSP). No ensaio “Bilionários em tempos de crise” (OP 320/2022), Julio nos presenteia com sua reflexão a respeito do que move um bilionário: “Penso que para chegar aonde chegaram devem ter possuído uma dose considerável de avidez a instigá-los; avidez que desliza frequentemente para a voracidade, qualidade esta que embute um nítido componente agressivo”. O autor discorre, dentre suas reflexões, sobre a capacidade de sentir culpa combinada ao desejo de reparação, qualidade que nem todo bilionário carrega. Elon Musk seria capaz de alcançar “o estágio de sabedoria e apreço pelos seres humanos menos favorecidos?”, pergunta-nos Julio, condensando neste personagem nosso incômodo diante da imensa concentração de riquezas em um grupo cada vez mais reduzido, em proporção direta à miséria crescente de nossa população.
Retrato que escancara nossa cruel desigualdade social, nossa maior tragédia. Seguiremos buscando as palavras de nossos colegas escritores para nomear a dor e a angústia de nosso país. Nossa terra é marcada, desde os seus primórdios, por fendas que separam os que têm acesso ao direito fundamental de bem estar social dos que são descartados ou usados somente para a manutenção dos privilégios de uma classe dominante. Em ano de eleições e de possiblidade de mudança no cenário da condução de nosso país, quem sabe encontramos também palavras que nos tragam esperança? Sonhar um país onde é possível ter como governante aquele que é capaz de ter “apreço pelos seres humanos menos favorecidos”, de respeitar a diversidade e a singularidade de cada grupo minoritário, e que seja fruto da escolha da uma imensa maioria identificada com os princípios de democracia e justiça social, é preciso.
Convidamos a todos, ainda, para seguir nossa página no Instagram – @observatorio_psicanalitico, que segue sob a batuta afinada de Rafaela Degani, Ian Favero Nathasje e Gabriela Seben (SBPdePA). Ali, encontrarão, além dos textos inéditos de cada semana, nossas publicações da terça cultural e o #tbt às quintas. Neste mês, tivemos, no primeiro item, “Dor, Forma, Beleza”(OP 146/2020), de Leopoldo Nosek (SBPSP); “Vertigem…no Oscar” (OP 142/2020), de Dora Tognolli (SBPSP); “A arte é uma só” (OP 322/2022), de Carolina Freitas (SBPdePA) e “Ancestralizar” (OP 324/2022), de Maria Teresa Lopes (SBPRJ). Em nossos #tbts, relembramos os textos “Um minuto de silêncio” (OP 122/2019), de Milguel Calmon du Pin E Almeida (SBPRJ); “Viver o mundo, pensar o mundo, cuidar do mundo: culpa e reparação em tempos de crise climática” (OP 268/2021), de Maria Luiza Gastal (SPBsb); “A fumaça do fogo pantaneiro” (OP 199/2020), de Paulo Marcio Bacha (SPMS, SPRJ); “Cultura e educação nos ministérios de Bolsonaro: o mal-estar na civilização revisitado” (OP 99/2019), de Luciana Saddi (SBPSP) e “Só não vale dançar homem com homem, nem mulher com mulher” (OP 253/2021), de Ian Favero Nathasje (SBPdePA).
Por fim, reforçamos o convite para que acompanhem nosso podcast “Mirante, disponível em todas as plataformas. Neste mês, tivemos a alegria de lançar a segunda temporada, agora com a participação primorosa de Wania Cidade (SBPRJ) na locução, entrevistas e, ao lado de nossa equipe de curadoria, na formulação do roteiro. No primeiro episódio, debatendo o tema “Psicanálise e Liberdade”, convidamos Carlos Alberto Medeiros e Raya Zonana. No segundo, José Damico e Valton Miranda Leitão (SPFOR), em “Jogo mortífero: desigualdade e exclusão”, conversam sobre a lógica colonial praticada em nosso país. No último episódio lançado neste mês, sob o título “Branquitude em questão”, Wania entrevista Deborah Medeiros e Eliane Nogueira (SBPdePA). Novos episódios já estão sendo gravados, e em breve estarão no ar.
Que a fertilidade de nossos textos e encontros nos façam companhia no mês de julho.
Equipe de curadoria,
Beth Mori, Ana Valeska Maia, Daniela Boianovsky, Rafaela Degani e Renata Zambonelli
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Editorial
Palavras-chave: Observatório Psicanalitico, Editorial, Escrita Psicanalítica, Elaboração e Simbolização
Colega, click no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página no Facebook: