Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Sódepois 34 – Fevereiro de 2023
“Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar (…)”
A canção de Chico Buarque foi composta em 1972, mas cai como uma luva neste fevereiro de 2023. Jamais imaginamos que ficaríamos dois anos privados da festa mais popular do país por conta da pandemia que assolou o mundo. Mas finalmente, ao menos por ora, parece que nos distanciamos deste infortúnio. Após um longo período de reclusão e de gritos abafados, o carnaval de 2023 foi comemorado com energia e entusiasmo nas ruas e nos sambódromos de diversas cidades brasileiras. Marchinhas, sambas, frevos e maracatus animaram foliões pelos quatro cantos do país, trazendo de volta a alegria adiada e sufocada pelo medo e pelas incertezas.
Nesse clima contagiante, o ensaio do psicanalista Gustavo Gil Alarcão (SBPSP) “Um alívio, a pulsão de vida voltou” (OP 369/2023) nos convidou a “botar o bloco na rua”, à exemplo do bloco carnavalesco “Unidos do Inconsciente”, formado por psicanalistas que no dia 11 de fevereiro cantaram divertidas paródias sobre Freud e a psicanálise pelas ruas de São Paulo. O autor aponta para o alívio sentido após um duro mês de janeiro, marcado, sobretudo, pelos atos terroristas praticados contra os três poderes em Brasília. Nesse sentido, tanto a posse do novo governo, que nos acena para o retorno da democracia, quanto a festa de carnaval, entram como uma injeção de libido e criatividade, fundamentais para o enfrentamento de situações adversas neste momento de recomposição política e social. Nas palavras do autor: “é realmente um alívio notar que a civilidade, a democracia e o respeito à diferença voltaram a ocupar o lugar central que sempre deveriam ocupar”.
Apesar da sensação de alívio e de esperança renovados, mais uma vez assistimos à devastação causada pelas chuvas e a negligência das autoridades em tomar medidas de prevenção para atenuar os seus fortes impactos. Desta vez, foi o litoral norte de São Paulo o palco do desastre que deixou diversos mortos e desabrigados, em um cenário típico de guerra que nem de perto lembra a paisagem exuberante de outrora. Acompanhamos também, estarrecidos, o desvelamento da triste situação de violência e descaso vivida pelos Yanomamis em Roraima, vítimas da ganância e do desejo de destruição daqueles que destituem os guardiões da floresta de sua humanidade. O garimpo ilegal, prática facilitada pelo governo Bolsonaro, bem como o desmonte nos serviços de saúde, foram os principais fatores responsáveis pelo agravamento desta crise humanitária.
Na esteira da impunidade e da violência, publicamos o texto da psicanalista Morgana Saft Tarragó (SBPdePA) intitulado “Pactos de morte e o futuro dos filhos brasileiros: Todo dia a mesma noite” (OP 368/2023) sobre a tragédia ocorrida na boate Kiss, em Santa Maria, que completou 10 anos no último 27 de janeiro. A autora, inspirada por uma minissérie recém lançada no Netflix sobre este acontecimento, nos convoca a pensar nos pactos perversos vigentes em nosso país, que facilitam a ocorrência de tragédias anunciadas como a da boate. Segundo Morgana “são sempre os filhos que morrem”. Enquanto a justiça não é feita, permanece a impunidade e o sofrimento das 242 famílias que perderam seus filhos no incêndio, dificultando o trabalho de elaboração deste luto tão doloroso: “A luta não terminou. A paz dos que não descansam ainda é uma utopia”.
No ensaio “Nossos órgãos dos sentidos como via de mão dupla” (OP 370/2023) José Alberto Zusman (SPRJ) apresenta algumas reflexões sobre a nossa realidade interna. Ele afirma que “mais do que uma série de fatos que nos chegam pelos sentidos, vemos o mundo que a nossa história permite”. Para o autor, a vida é um conjunto de possibilidades. A forma como a percebemos e a importância dada a cada experiência varia de acordo com os nossos registros internos: “cada um escolhe o produto que vai ser mais doce ou amargo conforme a sua experiência originária”.
Diante da proximidade das eleições para o board da IPA, nós da curadoria do Observatório Psicanalítico, fizemos um convite aos colegas candidatos latino-americanos para que escrevessem um ensaio, sob o viés psicanalítico, a respeito de algum acontecimento sociopolítico, institucional ou cultural de seu próprio país, da América Latina ou do mundo, com o intuito de melhor conhecer suas ideias e formas de pensar a psicanálise. Desde então estamos recebendo textos, e o primeiro a ser publicado foi o da colega Monica Vorchheimer, da Associação Psicanalítica de Buenos Aires (APdeBA), intitulado “Todos mentem” (OP 371/2023). Neste ensaio, a autora nos alerta para os riscos do pensamento dogmático, dentro e fora das instituições: “Viver em um mundo polarizado como este, atormentado por teorias da conspiração, notícias falsas e suposições de que “todo mundo está mentindo”, fragmenta nossas sociedades e nos desafia como psicanalistas em nossas vidas pessoais, em nossas práticas clínicas e em nossos laços comunitários e sociais”. Monica esclarece que vivemos uma multiplicidade de realidades, e que todas podem ser válidas: “saber disso é o melhor recurso para nunca abandonar a autoanálise e proteger-nos mais da nossa arrogância, onisciência e onipotência, cuidar dos outros, interessar-se pelo diferente, evitar fenômenos desumanizadores e salvaguardar um pensamento que continua a mover-se (…)”.
O segundo texto publicado foi o da psicanalista Olga Santa Maria Pombo, candidata pela APM (Associação Psicanalítica Mexicana). O ensaio “A mudança climática preocupa a nós, psicanalistas?” (OP 372/2023) problematiza a resistência da psicanálise e dos psicanalistas em abordar as mudanças climáticas cada vez mais sentidas por todos nós e com visíveis impactos na saúde mental. “Como enfrentar as contradições entre progresso, tecnologia, normalização de uma realidade perturbadora e a informação sobre a emergência climática?” Olga avalia que é necessária a criação de uma nova cultura em nossas sociedades psicanalíticas a respeito da crise climática, já que esta situação perpassa as questões subjetivas: “a psicanálise precisa encontrar um caminho dentro e fora do divã, afastando-nos da negação e nos aproximando da ação”.
Na sequência, publicamos o ensaio do psicanalista Daniel Delouya (SBPSP), um dos candidatos do Brasil a nos representar no board da IPA, intitulado “Ser responsável como membro de uma associação psicanalítica” (OP 373/2023). Neste texto Daniel nos oferece sua visão acerca das complexidades da psicanálise dos nossos tempos e em nossas instituições: “é preciso se voltar ao campo político como tudo que rege nossa cultura”. O autor propõe pensar em uma reforma no modelo de nossas formações, inserindo estudos sobre temáticas sociais e culturais que auxiliem na compreensão dos fenômenos da cultura e os seus impactos na subjetividade.
O último ensaio a ser publicado no mês de fevereiro foi o do candidato Mariano Horenstein, da Associação Psicanalítica de Córdoba (APC). Em “United Colors of IPA” (OP 374/2023) o autor faz uma analogia entre a antiga campanha publicitária da marca Benetton, que mostrava, através de fotografias, pessoas de diferentes etnias, e as nossas instituições psicanalíticas com sua “paleta” diversa de pensamentos. Seremos capazes de inovar? O autor reitera que “não se trata de nos apresentarmos como um arco-íris eclético, bem “pensante” e sem consequências, mas de reconhecermos que a nossa instituição – a sua diretoria em particular – é também ágora e palestra, um lugar para pôr as diferenças em jogo e para serem escutadas com um sotaque inequivocamente latino-americano. Não para nos opormos ao conhecimento que a tradição nos legou, mas para a tornarmos mais produtiva e mais fértil”. Mariano aponta ainda para a necessidade de um maior protagonismo dos analistas latino-americanos no âmbito político e epistêmico, não apenas repetindo a tradição psicanalítica, mas trazendo possibilidades de transformação e inovação.
Seguimos aguardando e recebendo textos dos candidatos ao board da IPA que serão publicados ao longo do mês de março!
Fevereiro também foi marcado por importantes conquistas. O projeto Ubuntu, idealizado por uma comissão coordenada pela psicanalista Ane Marlise Port Rodrigues, da SBPdePA, foi premiado pelo comitê “IPA nas comunidades e no mundo” com o primeiro lugar por sua contribuição para a área de Preconceitos, Discriminação e Racismo. O projeto visa a inclusão de colegas negros e indígenas na formação e o letramento racial da comunidade e das instituições psicanalíticas. O projeto SOS Brasil, coordenado pela psicanalista Alicia Lisondo foi agraciado com o primeiro lugar na categoria “Saúde”. Também foram premiados o Instituto da SBPRJ com a coordenação de Ney Marinho, sobre a temática do racismo, e o trabalho “Concluindo a formação psicanalítica: uma experiência de diálogo”, dos colegas Zelig Liberman e Maria Lucrécia Zavaschi, da SPPA, um dos ganhadores do Psychoanalitic Training Today Award. O Observatório Psicanalítico, por sua vez, também foi contemplado com o prêmio de segundo lugar concedido pelo comitê de Cultura da IPA, em reconhecimento pela efetiva contribuição e consistente trabalho de reflexão de nossos psicanalistas, compartilhado de forma acessível com a comunidade em geral. Cordelia Schmidt-Hellerau, do comitê de cultura da IPA ressalta que “ao abordar questões que dizem respeito a todos os níveis da sociedade – violência, política, habitação, cultura – a FEBRAPSI oferece reflexões que podem ser acessadas por todos de forma gratuita. Sua intenção é promover a observação e o pensamento, a crítica e a ponderação na crise e nas dificuldades de nosso mundo”.
Nós da equipe de curadoria do OP parabenizamos nossos colegas também premiados e ficamos lisonjeadas pelo reconhecimento recebido. Agradecemos os comentários generosos de nossos colegas, leitores e escritores frequentes em nosso Observatório. Suas contribuições são fundamentais para a manutenção deste projeto que há seis anos visa a ampliação da psicanálise e o debate sobre os acontecimentos mais importantes do Brasil e do mundo, agora enriquecido com o podcast Mirante. Utilizando as palavras da colega Luciana Saddi (SBPSP) em comentário por e-mail: “OP, SOS Brasil e projeto Ubuntu reafirmam a plasticidade e a criatividade da psicanálise!”.
Neste mês publicamos também um novo episódio do podcast Mirante, o nono programa da temporada Psicanálise e Democracia, que conversou com o psicanalista Miguel Sayad (SBPRJ) e o arquiteto Diego Matos sobre arte e política. A partir de 1968, com o AI-5, a censura e a tortura tornaram-se práticas cotidianas. A arte passou a ser reprimida, exposições foram censuradas e fechadas. Passados mais de 30 anos desde a redemocratização, perguntamos aos nossos convidados sobre como veem o cenário atual entre arte e política, na cultura e na psicanálise. As instituições devem se manifestar a respeito de atos antidemocráticos? O bate-papo, mediado por Beth Mori, está muito interessante. O Mirante pode ser ouvido no Spotify e em todas as plataformas de podcast.
Em nosso perfil no Instagram relembramos como #tbt o texto “Ainda resta esperança no insuportável?” (OP 47/2018) das psicanalistas Alice Lewkowicz, Eleonora Abbud Spinelli, Joyce Goldstein e Maria Elisabeth Cimenti, da SPPA, sobre o papel e a importância da psicanálise e das políticas públicas para pensar a infância em nosso país. Publicamos também como #tbt o ensaio de José de Matos (SPRJ) intitulado “Mais médicos, mais compaixão” (OP 79/2018) que versa sobre a importância da implementação deste programa no país, sobretudo nas comunidades mais desassistidas. Neste momento de crise humanitária em território Yanomami diversos médicos voluntários tem se deslocado para o atendimento desta população, reiterando a necessidade imprescindível deste trabalho.
O mês mais curto do ano foi bastante movimentado no Brasil, no mundo, e também aqui no OP. Acompanhamos com tristeza alguns acontecimentos ocorridos neste último mês, porém, sentindo que, em alguma medida, a pulsão de morte cedeu lugar à pulsão de vida, restabelecida através da democracia, que volta a nos acenar neste novo governo, dos prêmios de reconhecimento concedidos pela IPA, dos textos dos candidatos ao board que nos trazem expectativas quanto a uma psicanálise mais arejada e mais comprometida com a cultura e o social… Sem dúvida este “combo” nos dá subsídios internos para suportar o mal-estar sempre presente, afinal, como bem pontuou Paulo Freire: “Num país como o Brasil manter a esperança viva é em si um ato revolucionário”!
As águas de março já chegaram para fechar o verão! Sigamos em frente!
Um abraço da Equipe de Curadoria,
Ana Valeska Maia (SPFOR)
Beth Mori (SPBSB)
Daniela Boianovsky (SPBSB)
Gabriela Seben (SBPdePA)
Renata Zambonelli (SBPSP)
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Imagem da exposição Nhe’ê Porã: Memória e Transformação no Museu da Língua Portuguesa (SP). O nome vem da língua Guarani Mbya, composto a partir de duas palavras: Nhe’ẽ significa espírito, sopro, vida, palavra, fala; e porã quer dizer belo, bom. Juntos, os dois vocábulos significam “belas palavras”, “boas palavras” – ou seja, palavras sagradas que dão vida à experiência humana nesta terra.
Categoria: Editorial
Palavras-chave: Observatório Psicanalítico, Psicanálise, Candidatos ao Board da IPA, Projetos premiados pela IPA
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