Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Sódepois 32
Dezembro 2022
“Nas reuniões de família na época do pós-guerra, naquela lentidão interminável das refeições, alguma coisa vinha do nada e assumia uma forma: era o tempo já começado. Às vezes, os pais pareciam presos nele quando esqueciam de nos responder, os olhos perdidos em um tempo em que não estávamos, em que nunca estaremos, o tempo de antes. As vozes dos convidados se misturavam para compor a grande narrativa dos acontecimentos coletivos, os quais, pouco a pouco, passamos a acreditar que tínhamos vivido.
(…) Era uma narrativa cheia de mortes, violência, destruição, contada com tanta alegria que parecia querer desmentir, em alguns momentos, a observação contundente e solene ‘uma coisa dessas não pode voltar a acontecer’, seguida por um silêncio, espécie de advertência contra uma instância obscura, o remorso pelo prazer.
Mas só se falava sobre o que tinha sido testemunhado e que podia ser revivido enquanto comiam e bebiam. Ninguém tinha o talento necessário ou a convicção para falar sobre coisas que não tinha visto, embora fossem conhecidas. Assim, nenhuma palavra sobre as crianças judias entrando nos trens para Auschwitz, nem sobre as pessoas mortas de fome recolhidas de manhã no gueto de Varsóvia, ou sobre os dez mil graus em Hiroshima. Por isso a impressão que tínhamos – e que as aulas de história, os documentários e os filmes depois não dissipariam – era de que nem os fornos crematórios nem a bomba atômica se situavam na mesma época da manteiga no mercado negro, dos alarmes e das descidas para se abrigar no porão”.
Os trechos são de Annie Ernaux, vencedora do prêmio Nobel de Literatura, em seu livro “Os anos” (p.17 e 19). Através de uma escrita marcada por reconstruções autobiográficas que se entrelaçam com refinadas descrições do contexto sociopolítico, a autora nos leva a um tempo em que os horrores da Segunda Guerra começavam a se situar definitivamente no passado, ao mesmo tempo em que suas marcas traumáticas transcendiam o tempo vivido e alcançavam as novas gerações, herdeiras do trabalho de elaboração coletiva.
O mês de dezembro no Brasil representou o último de um longo período de 4 anos sob o desgoverno de Jair Bolsonaro e sua destrutividade extrema, e, já sob efeito do resultado do pleito eleitoral, finalmente pudemos começar a acordar do pesadelo e dizer, em grande medida: acabou.
Ao mesmo tempo, a brutalidade do vivido e a permanência de resíduos segue demandando narrativas em busca de ligação. Em “Ensaio sobre o Colapso Brasileiro de 2020” (OP 354/2022), o colega Víctor Cruz de Freitas (SPRJ) nos oferece a ideia de colapso ao perceber a intensidade do traumatismo coletivo: “Mas o ego (a sociedade) não pode se organizar contra o fracasso ambiental (governamental), na medida em que a dependência é um fato da vida.”
Sim, seguiremos narrando, e narrando, e narrando…
Mas agora, com a esperança renovada. Lula preparava seu robusto e colorido Ministério, e anunciava as medidas prioritárias de reconstrução do Estado Democrático. A virada do ano se aproximava, carregando a perspectiva de uma mudança radical de projeto de governo. Sérgio Rodrigues, em sua coluna de 28 de dezembro na Folha de São Paulo, escreveu: “Como uma Mega-Sena acumulada, ‘feliz 2023’ traz em si, em camadas, os votos de felizes 2019, 2020, 2021 e 2022 que ficaram presos na garganta –ou foram proferidos de modo apenas protocolar (…)”.
Neste 1º de janeiro de 2023, o espaço vazio deixado por Bolsonaro na cerimônia de Posse do presidente Lula foi preenchido de forma magistral. Já bem disse Millôr Fernandes: “quando um chato se ausenta, que presença de espírito!”.
Representantes do povo brasileiro subiram a rampa e empossaram o presidente eleito, recuperando o verdadeiro sentido da palavra Democracia, em um ato emocionante que teve a força de um marco histórico. Entregaram a faixa Aline Souza, catadora, neta e filha de catadores; Cacique Raoni, líder indígena; Wesley Viesba Rodrigues, metalúrgico do ABC; Francisco, menino de 10 anos morador da periferia de São Paulo; Murilo de Quadros Jesus, professor de português; Jucimara Fausto dos Santos, cozinheira; Ivan Baron, influencer na luta anticapacitista; Flávio Pereira, artesão, 50 anos. O grupo foi acompanhado pela cachorrinha vira-lata Resistência, adotada por Janja no acampamento em Curitiba enquanto Lula estava na prisão. O simbolismo da cena, os discursos do presidente, a forte presença política de Janja como primeira-dama ativa e nada recatada, e a festa que inauguraram o início do governo indicam uma direção clara: inclusão, combate às desigualdades, conciliação, participação social e alegria. Que assim seja!
É nessa mesma direção que Gabriela Seben (SBPdePA) e Marcela Pohlmann (SBPdePA) escrevem “Racionais MC’s: malandragem de verdade é viver” (OP 356/2022) e “Racismo, esse preconceito que nos habita” (OP 357/2022). Trazendo para dentro da cena da FEBRAPSI as vozes negras, escutando verdadeiramente esse outro “não-branco”, e auto-analisando o próprio existir enquanto branquitude, as autoras se postam em uma atitude ética de respeito radical à alteridade, tão necessária à nossa vida política e também à nossa prática psicanalítica. A partir dos efeitos das ações afirmativas e do letramento, o racismo incrustado em todos nós é revelado, e então pode haver movimento. As placas tectônicas do mundo se movem sob os nossos pés, e a psicanálise precisa acomodar os abalos se não quiser padecer em monólogo e rigidez.
Mas, estaríamos, nesse incío de janeiro, em comoção, experimentando um pouco do sentimento oceânico, da dinâmica das massas? Em alguma medida, sim. Lula se mostrou um grande líder, o único capaz de fazer as amarrações necessárias para unir as forças do campo democrático em uma ampla frente de oposição à perpetuação do poder da extrema-direita. Seu jeito carismático e personalista, sua história recente de resistência durante os anos na prisão, mantendo-se vivo, pensante e apaixonado, e seu retorno à política para tecer a articulação que hoje nos salva de um destino muito sombrio, o coloca como uma espécie de herói nacional, e aos que ousam sonhar com um país mais justo, é impossível não aderir, ainda que momentaneamente, a essa onda de amor, esperança, e por que não, de utopia.
Em “Psicanálise em três atos” (OP 358/2022) e em “Nascimento e morte do Herói” (355/2022), Roosevelt Cassorla (SBPSP e SBPCamp) e Gley P. Costa (SBPdePA) descrevem dinâmicas de grupo que elegem mitos ou heróis, apontando para uma adesão cega ao líder idealizado, através de um vínculo perigoso: “(…) Becker desmascara com rara inteligência e criatividade a verdadeira motivação do surgimento do herói, assim como descortina o seu destino: tornar-se escravo dos anseios do seu criador, sob a pena de cair no esquecimento ou mesmo em desgraça. Por conta disso, os heróis encarnados costumam ter vida curta. Permanecem os heróis da fantasia”, escreve Gley.
Mas a dinâmica das massas é apenas uma parte de tudo aquilo que constitui o que chamamos de Política, e em seu discurso, Lula reafirma uma aposta crucial, refazendo a pactuação dos princípios e valores que escolhemos em 1988 para mediar a nossa convivência, em que a cadeira vazia é o símbolo protetor: “Reafirmo, para o Brasil e para o mundo, a convicção de que a Política, em seu mais elevado sentido – e apesar de todas as suas limitações – é o melhor caminho para o diálogo entre interesses divergentes, para a construção pacífica de consensos. Negar a política, desvalorizá-la e criminalizá-la é o caminho das tiranias.”
Ora, cabe a todos, todas e todes o desafio de, cotidianamente, exercer a política, reafirmar a democracia, de sustentar um pensamento crítico capaz de contra-balancear as paixões e idealizações, os nossos aspectos mais regressivos. O acordo pelo poder do povo não pode ser substituído pela adesão cega, nem tampouco ser entendido como uma inesgotável e incondicional fonte de direitos a serem exigidos de braços cruzados, numa relação clientelista com um líder idealizado e suposto onipotente. Ela pressupõe uma responsabilização coletiva que exige o exercício do amor e da tolerância, mas também atenção, implicação, reconhecimento da lei, trabalho e por vezes, oposição.
Ainda está sobre o nosso colo a tarefa de rechaçar frontalmente as forças do fascismo, mais profundamente implantadas do que gostaríamos de constatar, e ainda preservando força no poder Legislativo e em vários governos estaduais em todo o país. Seguimos diante do desafio histórico de avançar ainda mais e poder situar o bolsonarismo, enquanto forma de poder, definitivamente no nosso passado.
Este ano, nós, curadoras do OP, trabalhamos muito, movidas pela importância de ventilar as ideias que fazemos circular, e seguiremos implicadas, atentas e fortes, porém com uma mudança dolorosa. Rafaela Degani deixará o nosso grupo de curadoria, e seguirá por outros caminhos, certamente produzindo outras tantas coisas boas em outros espaços. Suas contribuições foram preciosas, e seu jeito afetivo e bem humorado nos fará falta. Damos as boas-vindas a Gabriela Seben, que já está com as mãos na massa e nos trazendo a potência da novidade.
E em dezembro, nossa equipe do Instagram relembrou os textos “Observatório Psicanalítico Febrapsi: uma construção coletiva”, de Carlos Frausino, Beth Mori, Cíntia Xavier de Albuquerque (SPBsb); “Copa: encontros”, de Augusto Ferrari (SPPA); “De novo “o ovo da serpente”?”, de Claudio Laks Eizirik (SPPA) e “El pibe de oro se fué”, de Julio Hirschhorn Gheller (SBPSP). Acompanhe nossa página: @observatorio_psicanalitico
Que histórias contaremos, à mesa com nossos filhos e netos, quando tudo isso terminar de acabar?
Mas hoje já é outro dia! É outro ano!
Feliz 2023! Um abraço a todos, da Equipe de Curadoria do OP:
Ana Valeska Maia (SPFor)
Beth Mori (SPBsb)
Daniela Boianovsky (SPBsb)
Gabriela Seben (SBPdePA)
Rafaela Degani (SBPdePA)
Renata Zambonelli (SBPSP)
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Editorial
Palavras-Chave: Observatório Psicanalítico, Estado Democrático, Ano Novo, Lula e Janja.
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