Podem negros e negras frequentarem os institutos de psicanálise?

Observatório Psicanalítico – 184/2020

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do Mundo.

 

Podem negros e negras frequentarem os institutos de psicanálise?

Ignácio A. Paim Filho (SPBdePA) e Wania M. C. F. Cidade (SBPRJ)

 

“São proibidos de frequentar as escolas públicas – Primeiro: Todas as pessoas que padecem de moléstias contagiosas. Segundo: os escravos e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos” (lei de número 1, 14/01/1837). 

 

Brasil do Império Branco, janeiro de 1837: em seu derradeiro século de existência segue com a preocupação de manter a população negra escravizada e, também, afastada da ascensão ao conhecimento. Tal fato nos faz interrogar, o que o povo branco do Brasil monárquico receava? Por que proibir através de uma lei, o acesso à educação a essa população, vista por eles como incapaz, incompetente para o pensar e limitada à categoria de coisa? Que contágio era temido pelos ideais de brancura desse Brasil de imensa população negra?

 

Temiam a revolta, a inclinação à luta por liberdade que, negros e negras, investidos de um saber sobre si ‒ sobre a sua história, sobre as riquezas da sua cultura (exploradas no processo de dessubjetivação), sobre as atrocidades cometidas contra o seu povo e  seus ancestrais ‒ estariam aptos a realizar. 

 

O povo branco sabe que o conhecer é poder e é também agente de ruptura do status quo: capaz de libertar e de redefinir os paradigmas da ordem cultural. Porque quando negras e negros tomam para si a busca transformadora do conhecimento, em seus múltiplos sentidos, põem em marcha a reconquista dos continentes que lhes foram roubados, de onde foram exilados, assassinados, violados e… Portanto, no apagar das luzes da monarquia e no alvorecer da república, mais do que nunca, o sistema plantation prosseguiu no seu duplo propósito imperioso: eliminar esses seres indesejados, deixando-os à própria sorte, já que não serviam mais aos seus fins,  e de embranquecer o país, estimulando à mestiçagem. Dentre as cruéis estratégias de eliminação, vemos, até os dias de hoje, subjugarem a potencialidade intelectual, do povo negro, com investida virulenta ao processo criativo do pensamento, tentando mantê-lo fixado em uma só posição. Exercício de perversidade que visa perpetuar a […] dominação absoluta, uma alienação de nascença e uma morte social (Mbenbe, 2003/2018).

 

Temos aqui uma das gêneses do racismo com seus desdobramentos da conservação e da necessidade de cultivar os afro-brasileiros à margem das aquisições da cultura. Dispositivo intrínseco ao racismo estrutural, do passado e do presente. Esse que é constituído pela coletividade branca, em nome da permanência de suas prerrogativas: políticas, econômicas, assentadas na falácia de uma excelência em sua subjetividade.  

 

Brasil do imperialismo da branquitude, julho de 2020: estamos a 183 anos dessa lei racista e escravocrata. Nesse período encontramos alguns avanços, que permitiram oficialmente aos negros e negras ter acesso ao ensino fundamental e médio, que culminaram em 2012 nas leis de Cotas Raciais, viabilizando o seu ingresso na universidade. Contudo, temos que assinalar, persistem na população negra altos índices de interrupção dos estudos, seja porque a forma de administração do sistema de cotas falha em sua efetivação ou porque os danos emocionais atingem níveis tão elevados que impedem a continuidade. Entretanto, mesmo com várias falhas no seu processo de legitimar a equidade racial, temos conquistado alterações significativas que põem em movimento perspectivas de modificações na hierarquia social. 

 

Podemos dizer o mesmo de nossas instituições psicanalíticas? Temos trabalhado no sentido de ampliar a presença de negros e negras em nossos institutos de formação? Quando vamos começar a estranhar a presença do “negro e da negra únicos”?

 

Como sabemos, a psicanálise começa o seu processo de institucionalização no Brasil em 1927, o projeto de formação de analistas em 1936. Portanto, temos 84 anos de história dedicados à psicanálise, à transmissão e à formação de analistas. Um longo tempo, de uma história de produção de ideias, de conhecimento e de política, que nos permitiu uma inserção importante em nossas instituições maiores FEBRAPSI, FEPAL e IPA. Mas esse cenário revela em seus bastidores uma boa dose de submissão – nossa herança racista e escravocrata não trabalhada vigora em nós – raramente estudamos autores brasileiros brancos, negros nunca. Crescemos, conquistamos um lugar, porém mantivemos um distanciamento radical de nossas origens: Sua origem define seu destino. Podemos comparar os derivados (do inconsciente) aos mestiços daquelas raças humanas que a grosso modo já se assemelham aos brancos, mas cuja origem de cor é denunciada por um traço que chama a atenção e os mantém excluídos da sociedade, impedindo-os de gozar as prerrogativas dos brancos (Freud, 1915). Qual o preço que pagamos? Intimidamo-nos, pelo medo de sermos excluídos da sociedade, impedindo-os de gozar as prerrogativas dos brancos. Tal condição está associada, provavelmente, à impossibilidade de sustentar a riqueza e singularidades do pensamento psicanalítico brasileiro. 

 

Qual a cor da nossa psicanálise? 

 

O inconsciente se apresenta como um mestiço, um eterno estrangeiro, nos territórios da consciência com seus valores morais.

 

Somos o país que tem a maior população negra fora do continente africano, 56% da população brasileira – realidade conhecida e desconhecida. Contudo, isso não se reflete em nossas instituições. Seria a psicanálise uma prática de branco para brancos? O racismo segue fazendo história em nossas casas psicanalíticas? Acreditamos que sim, seja por omissão, conivência ou indiferença, perpetuamos as ideologias dos colonizadores: Brasil […] construído por negros, mas sempre sonhou ser um país de branco (Laurentino, 2019). Não esqueçamos que o racismo envolve a questão de delimitar territórios, de marcar fronteiras, que visam fazer do conterrâneo negro e negra um estrangeiro. 

 

Até quando?

 

Queremos o povo negro compartilhando do saber interrogativo que a psicanálise propõe? Esse que está associado com liberdade, com o saber do próprio desejo, com a autonomia, ruptura com a alienação imposta pelo colonizador de ontem e de hoje? O que nos amedronta, se tivermos uma população de analistas negras e negros, condizente com a nossa história – história de um país construído por negras e negros – fazendo parte ativamente de nossas Sociedades? 

 

Todas essas questões pedem respostas e ações. A psicanálise e os psicanalistas têm uma dívida histórica com o povo negro e com as singularidades do pensamento psicanalítico brasileiro. Dívidas pelas quais temos que nos responsabilizar e buscar formas de minimizar seus efeitos. Nosso racismo institucional e individual, presente na composição estrutural de nossos institutos, precisa instrumentalizar medidas antirracistas. Recordemos o velho refrão jurídico: Praticou a ação quem dela se beneficiou (Freud, 1900). 

 

Momento de reequacionar o tripé da formação, contemplando os aspectos econômicos, políticos e subjetivos.  

Para isso as sociedades precisam pagar uma cota que as direcione para a construção de institutos de formação psicanalítica de mentalidade aberta ao que lhes é diverso, não com um pensamento benevolente e dadivoso, mas com o reconhecimento daquilo que foi subtraído do povo negro.

 

Tempo de corroborar, através de ações afirmativas – no início foi o ato (Freud, 1913) – que negras e negros podem e devem frequentar os Institutos de Psicanálise. Ocasião propícia para perturbar o sono e os sonhos do mundo psicanalítico, que se persevera sob o domínio do primado branco.

 

Como descreve Lia Schucman: “Branco não é só uma cor, mas um lugar”. Lugar estratégico, determinado, definido e reservado para eternizar o seu estado soberano.

 

Na expectativa do nosso reencontro, com o mesmo jeito subversivo de Freud, fazer e pensar a psicanálise, na clínica e no cultural: Compreendi que daquele momento em diante eu passara a fazer parte do grupo daqueles que “perturbaram o sono do mundo” (Freud, 1914).  

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

 

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Os ensaios do OP são postados no site da Febrapsi. Clique no link abaixo:

 

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