Observatório Psicanalítico – 197/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
O que a humanidade está gestando nessa pandemia?
Gabriela Seben, Juliana Lang Lima e Rafaela Degani (SBPdePA)
Em um momento de perdas e de onipresença da potencialidade destrutiva humana, trazemos novamente para debate um aspecto do feminino: a gestação como personificação de Eros. Contraponto à morte, a continuidade da espécie é garantida pela disposição ao estado gravídico – há um corpo que se transforma em continente para uma nova vida, com a fertilidade materializada em todo seu vigor. A mulher grávida, quando essa gestação foi fruto de seu desejo, carrega a esperança viva dentro de si.
A pandemia causada pelo novo coronavírus nos confronta com a impositiva força de Tânatos. A cada dia, chegam notícias de amigos doentes, de conhecidos internados, de milhares de mortes. Preocupações financeiras, políticas, emocionais… manifestações da incerteza que permeia o viver, desde o instante em que acordamos até a hora do desejado descanso.
Sofremos todos com saudade da vida que já não podemos mais ter, sentimos falta daqueles com os quais estamos impossibilitados de conviver. Sequência avalassadora de lutos; uma gangorra que alterna entre desmentir a realidade e acreditar que nada irá nos acontecer, até o seu extremo oposto, o desespero diante da realidade nua e crua.
Nos últimos meses, houve um aumento estarrecedor nos casos de violência doméstica, sobretudo contra mulheres e crianças. O número de divórcios também é crescente e as situações de abuso se exacerbaram terrivelmente, denunciando diversas e similares faces da destrutividade humana. Agressividade compreendida como expressão das pulsões desenfreadas no ambiente endogâmico, sem o usual refúgio da exogamia.
Mas, em meio ao caos, existe também a vida! Segundo o Fundo Populacional da ONU, há um baby-boom em andamento em 2020, cuja causa seria o fato de que milhões de mulheres deixaram de ter acesso aos métodos contraceptivos por conta da pandemia. Somados aos fatores biológicos e de saúde pública, aventamos a hipótese de que, frente à morte, a gravidez surge como uma reação, quiçá uma forma de resistência psíquica.
Gerar uma vida demanda um exaustivo trabalho físico e psíquico, mas também recompensa sobremaneira. Dar origem a um novo ser revela a aspiração à pujança da vida permeando o inconsciente dos casais em meio ao caos destrutivo. Frente a uma situação de dimensões tão traumáticas como a que estamos vivenciando, impressiona que as saídas sejam férteis, pelo menos para um grande número de mulheres que emprestam seus corpos para abrigar as novas vidas que dali surgirão. Gestar, criar o novo, é sem dúvida uma forma de transformação do pulsional mortífero em algo potencialmente ligador, de vida.
É preciso amar para não adoecer, já nos disse Freud. Amor, fonte de investimento libidinal no eu e no outro. Trabalhar em si e para fora de si, escrever, tecer novas ideias, atuam assim como possibilidades diante dos excessos que nos assombram.
É diante deste cenário que nós, mulheres e psicanalistas, temos buscado a criação como alternativa ao caos. Em plena pandemia, acessamos novamente nossas vivências de fertilidade por meio de um projeto conjunto (o livro “A analista grávida”, lançado em julho desse ano), buscando nessa experiência visceral nos nutrir da força de Eros. Lembrar da gravidez da analista e de seus desdobramentos na sala de análise, em que aspectos de sua intimidade que atravessam o cenário e perturbam uma suposta neutralidade, tem lá suas semelhanças com o momento atual. Afinal, estamos às voltas com nossas casas, vivendo algo que em muito se assemelha a um puerpério – momento de recolhimento, de bagunça, com vistas a uma futura reorganização, sabendo que nada será como antes.
E assim, em meio a muito cansaço, emoções em ebulição e medo de não dar conta, somos todos convocados a gestar um mundo melhor.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Imagem: Ivone Rizzo Bins
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