Observatório Psicanalítico – 177/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do Mundo.
O painel branco e a política do faz de conta
Helder Pinheiro (SPFOR)
Nem o painel do Ministério da Saúde suportou registrar a escalada de brasileiros mortos cotidianamente! Bem poderia ser esse um dos pensamentos presentes na mente dos mais desavisados. Não, não foi isso. O portal foi posto em suspensão, à semelhança da política de saúde do próprio Ministério.
A suspensão da contagem dos mortos é mais uma estratégia da política atual defendida pelo governo federal. A política do faz de conta representa uma denegação da tragédia que abate a todos nós e, ao mesmo tempo, serve para inocular a incerteza e a desinformação na população, já atordoada pelas declarações maquiadas dos membros da equipe ministerial, os quais se veem submetidos aos ditames de um presidente incompetente para gerir o país do mesmo modo como o faz com sua atormentada condição mental.
Cotidianamente, vemos em nosso país a suspensão de direitos que foram construídos, a duras penas, em gestões passadas. Agora, é o direito de acesso às informações que foi a escolha da vez, uma censura – já não velada – focada em atender os deleites narcísicos do presidente.
Dentre as atitudes antidemocráticas que vigoram em nosso país, as atitudes racistas clamam por atenção. Certamente, o racismo no Brasil não é algo novo, está na base de nossa cultura escravocrata. Sendo a maioria dos brasileiros pobres negros ou pardos, vêmo-nos diante do necessário desafio que é compreender o lastro do racismo no Brasil. “A escravidão nos legou o racismo como prática social dominante que liga ideologicamente os brancos, mantendo privilégios, enquanto é negada a cidadania aos negros e negras”, segundo Fábio Nogueira (2017). Acrescento a esta fala a negação da cidadania às pessoas com deficiência. Não sei como é ser discriminado por ser negro, pois sou branco, mas sei o que é ser atingido pela discriminação, herança e produto de nossa cultura escravagista. Somente discutindo as discriminações em nosso país é que entenderemos o caráter disruptivo dessa prática do estado brasileiro que impede a elaboração e o luto da nossa História escravagista.
Tomando por base o poema “Morte e vida Severina”, obra-prima do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, escrito entre 1954 e 1955, constataremos que os Severinos que buscaram cuidados nas UPA’s, e não conseguiram, escancararam a incapacidade do governo federal em cuidar de seus cidadãos. A título de exemplo, trago um recorte do que escutei nos atendimentos de pacientes que trabalham na área da saúde: a exposição contínua e desumana ao caos instalado nas UPA’s traz relatos dolorosos dos profissionais que, invadidos pela angústia de não ofertarem as condições adequadas de atendimento – desde a ausência material de proteção individual à falta de oxigênio aos seus pacientes, na maioria, moradores das periferias – viam-se diante dos inúmeros corpos amontoados nas câmaras frigoríficas e corredores. Por outro lado, os Severinos mortos já não podem relatar o desespero experimentado frente ao desamparo vivido dentro de ambulâncias que, enfileiradas nas portas dos hospitais, antecipavam o funeral de tantos outros que percorriam o mesmo caminho, à espera do leito que poderia surgir a qualquer minuto. Eram fartos os números de mortes severinas, empalidecidas no painel nacional. Situação que contraria um direito constitucional.
O fato de vivermos uma pandemia não nos autoriza entender que essa catástrofe atinja a todos os brasileiros de forma democrática. A crescente marca de contaminação e morte, antes retratada no painel, foi encoberta pela política higienista e nefasta do faz de conta bolsonarista que insiste com o desmentido de vivermos um pacto civilizatório bem estabelecido.
Brasileiros morreram após sentirem que seus pulmões – tomados pelo processo inflamatório – não conseguiam levar o oxigênio necessário a vida. A morte por sufocamento é uma morte sofrida, como testemunhou Georg Floyd – um cidadão americano negro – brutalmente asfixiado por um policial – branco – revestido do preconceito de que a cor da pele pode determinar um baixo valor à vida. Aliás, há quem possa calcular o valor de uma vida?
Com o predomínio da política mundial apoiada pela lógica dessubjetivante das relações, no Brasil chegamos a extremos aviltantes, pois a condução política tem tomado de nós – Severinos – o direito de respirarmos o ar da democracia. A interpretação que Elza Soares faz da canção “A carne”, composição de Seu Jorge – ambos negros – fornece um vislumbre do preconceito imbricado na indecorosa história do Brasil: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”.
Os valores econômicos se tornaram critério decisivo para as relações institucionais. No momento da construção desse texto, as instituições brasileiras abriam as porteiras para que as pessoas pobres e de classe média pagassem um alto preço por retornarem ao trabalho. A política do faz de conta “legitima” que as instituições públicas e privadas não enfrentem as dificuldades econômicas que uma pandemia deflagra. A especulação financeira no Brasil sempre precisou ser sustentada pela exploração dos Severinos. A banalização da violência adentrou nos lares brasileiros. Para uns, pela bagatela de vinte mil reais de fiança paga pela patroa branca, se precifica a injustificável atuação que, incapaz de cuidar de seu lar, que submeteu sua empregada – negra – a trabalhar em tempos de pandemia, aceitando que levasse o filho para testemunhar que o trabalho doméstico, realizado por uma mulher negra, no Brasil, vale menos que o cocô do cachorro.
Não é razoável aceitar passivamente a morte de milhares de cidadãos como resultado dos desmandes de poderosos sobre pessoas mais vulneráveis, seja pela condição de estarem doentes, pelo racismo ou por ser uma criança que buscava, na mãe, um manejo capaz de apaziguar seu sofrimento. Temos que dar voz aos Severinos que buscam uma sina melhor do que aqueles que os precederam, atualmente acuados entre trabalhar e pagar com sua vida ou dos filhos para manter privilégios de brasileiros que assistem outros morrerem à míngua por serem invisíveis aos olhos da política bolsonarista.
A vida tem um valor incalculável!
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