Observatório Psicanalítico – 73/2018
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
O olho da serpente
Valton de Miranda Leitão (SPFOR)
Bergman mostrou que o filhote da serpente nos olha de dentro da casca.
O roteiro nazifascista à brasileira já estava pronto desde o golpe militar de 1964. Os ingredientes do pão de queijo nunca mudam, mas o algoritmo de uma empreitada nazificadora pode ser alterado conforme seus planejadores estejam em Weimar, Washington ou Brasília. O psicanalista treinado para a visão binocular sabe que a linguagem da consciência política (processo secundário) somente pode ser entendida quando acompanhamos os sonhos, os mitos e as emoções do inconsciente que avultam na escuridão (processo primário).
Os sistemas de crenças e preconceitos arquetípicos inconscientes se combinam com a raciologia que vê no negro, na mulher e no índio seres inferiores. Esse dispositivo foi acionado na Alemanha com “estrondoso sucesso”, pois desde o Imperador Carlos Magno a nordicização particularista já era oposta à universalização romana. O script de Bergman está sendo atualizado na história contemporânea com o Brexit, Trump e o irrelevante e medíocre mito da irracionalidade brasileira. É preciso, entretanto, parabenizar os roteiristas deste espetáculo de horror que agora apresenta, como se surpresa fosse, seus atores principais. A farda e a toga compõem o cenário da fé pentecostalista, utilizando o Direito para transformar as leis da justiça em instrumentos ameaçadores. A hibris desmedida das dez medidas será acionada como instrumento intimidador contra todos os que não aclamarem o “Imperador”. O gigante Procusto, com sua régua implacável, pretende castigar os que não se ajustem de pensamento, corpo e ideias, enquanto os holofotes midiáticos completarão o espetáculo.
É realmente um espetáculo de prestidigitação conduzido pela mídia brasileira que tem como audiência-rebanho o filme kafkiano Todos são iguais perante a lei! Kafka mostrou em O processo o inconsciente do judiciário, cuja figura central é o juiz apresentado no texto com características sagradas. Freud no estudo sobre O Moisés de Michelângelo mostra o lado ambíguo daquele que se apresenta como portador da Lei, fazendo a ponte entre Deus e os homens! A condição sacramental outrora atribuída aos reis absolutos ingressa na política brasileira pelo caminho do voto instrumentalizado via internet. Somente uma cegueira intelectual é incapaz de ver que o script já fora traçado com extraordinária competência ilusionista que faria inveja aos grandes dramaturgistas da farsa. Isso tudo feito dentro da fina casca de ovo da democracia, ou seja, a Constituição desconstitucionalizada democraticamente. Os mais altos condotieri juntos nessa empreitada bem sucedida que visa uma ambiciosa geopolítica latino-americana pinochetiana, combinada com a destruição da esquerda, utilizando um surrealista perigo vermelho.
Bion ensinou que a verdade alimenta a capacidade de pensar, enquanto a mentira nutre a arrogância. A política de todos os regimes historicamente utiliza a mentira para alimentar a destrutividade da pulsão de morte. É necessário que os integrantes da cultura universalista oponham ao processo anticivilizatório da guerra cultural a poderosa capacidade de ligação amorosa de Eros. As serpentes saídas do ovo colocam o Brasil numa era sombria e ameaçam espalhar seu veneno pelo campo do saber e da cultura. Agora a pós-verdade da mentira concentrada surgiu escandalosamente no cenário nacional!
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