Observatório Psicanalítico – 204/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
O mundo todo está vendo
Cláudio Laks Eizirik (SPPA)
Há poucos dias, conforme foi noticiado aqui no Observatório Psicanalítico, a Associação Psicanalítica Americana, filiada à IPA, divulgou um manifesto cuja tônica é que o caráter importa (na mesma linha das manifestações públicas em defesa de que “Vidas Negras Importam”), criticando as várias ações negligentes, demagógicas e criminosas do atual presidente de seu país e conclamando seus membros a votarem no candidato democrata. A APsaA, assim, se alia a inúmeras instituições norte-americanas da ciência, da imprensa e profissionais, que se posicionam no mesmo sentido, muitas delas pela primeira vez em sua história centenária.
Quando governos autoritários se elegem, como sabemos, tornam-se evidentes as ameaças ao meio ambiente, à cultura, à liberdade de expressão, à educação, à saúde pública, às várias conquistas dos direitos humanos.
Enfrentamos esta situação também no Brasil e em outros países (por exemplo na Venezuela, como destacaram vários analistas daquele país em mais de uma sessão do Congresso Virtual da FEPAL, ora em curso), e embora ela conte com o apoio de parte da população, existe também contra ela uma resistência de parte da sociedade civil, da imprensa e de muitas instituições profissionais, entre as quais psicanalíticas.
Ora, a psicanálise, desde Freud, sempre buscou entender as motivações e razões que levam à complexa relação entre líderes e liderados, ao estabelecimento de lideranças despóticas e seu destronamento, desde “Totem e Tabu” (1913). O papel do líder, sua relação com as massas e os grupos, e essa dinâmica complexa estão muito bem descritos em “Psicologia das Massas e Análise do Eu” (1921), e o papel central da pulsão de morte e destrutividade em “Além do Princípio do Prazer” (1920).
Num trabalho sobre a função paterna e o princípio paterno (Eizirik, 2015), destaquei que existe uma confusão entre a natural rejeição da figura paterna patriarcal, autoritária e dominante, por um lado, e a necessidade de uma função paterna, ou um princípio paterno, inspiradores e organizadores, tanto para o desenvolvimento emocional como para o trabalho no campo analítico e na estrutura social.
Em seus “Ensaios sobre psicologia social e psicanálise”, Theodor Adorno (2015) examinou alguns aspectos da propaganda fascista, destacando que costuma ser personalizada, glorificar a ação, a religião e o patriotismo, oferecer às massas a realização de seus desejos e, principalmente, apesar de toda sua lógica enviesada e distorções fantásticas, ser algo conscientemente planejado e organizado. O agitador fascista, diz Adorno, é um exímio vendedor de seus próprios defeitos psicológicos, visando uma identificação inconsciente de seus seguidores. É característico dos demagogos fascistas vangloriar-se de terem sido heróis atléticos na juventude. Os líderes fascistas são chamados de histéricos (aliás, nos três países aqui citados temos exemplos claros), mas o fato é que atuam de forma vicária por seus ouvintes desarticulados, ao fazer e dizer o que estes gostariam, mas não conseguem ou não se atrevem a fazê-lo.
Num livro recente, “Tyrant- Shakespeare on Politics”, Stephen Greenblatt (2018) estudou os tiranos de Shakespeare, partindo das seguintes perguntas: como é possível que um país inteiro caia nas mãos de um tirano? Por que tantas pessoas se deixam enganar por mentiras? Como figuras como Ricardo III ou Macbeth conseguem ascender ao trono?
Descrevendo a estratégia dos aspirantes a tirano, Shakespeare, segundo Greenblatt, observou nas classes dominantes de seu tempo um grande desprezo pela democracia e pelas massas, sendo o populismo um pseudo-abraço nos pobres, mas, na realidade, uma forma de exploração cínica. Shakespeare acreditava, segundo nosso autor, que os tiranos e suas expressões posteriores acabariam por cair, derrubados por sua maldade, e pelo espírito popular de humanidade, que pode ser reprimido, mas nunca extinto. A melhor possibilidade de recuperar a decência coletiva estaria, então, na ação política das pessoas comuns.
Shakespeare sempre situava suas peças pelo menos a uma distância de cem anos do momento em que vivia, para se proteger da censura, da prisão ou de castigos maiores decretados pelos tiranos de plantão ou seus zelosos funcionários.
A Netflix, há poucos dias, lançou o filme de Aaron Sorkin “Os 7 de Chicago”, que visita o passado para refletir sobre o presente, nas palavras do jornalista Ticiano Osório (ZH, 25/10/2020), mostrando o julgamento de 8 pessoas que lideraram manifestações contra a guerra do Vietnam poucos dias antes da convenção democrata, em Chicago, em 1968, ano em que Martin Luther King e Robert Kennedy haviam sido assassinados. O filme é didático, pois mostra com clareza as manobras e articulações do governo Nixon para condenar os réus e impedir um julgamento justo. Apesar da contínua violência policial, a multidão enfrentava as tropas gritando o bordão que ficou famoso: The whole world is watching! (O mundo inteiro está vendo!)
Cinquenta anos depois, vemos as sucessivas manobras do atual presidente americano (ridicularizado num texto recente de Julian Fuks – “O fim do velho homem: fragilidade de Trump é emblema de uma derrocada maior” – mas ainda assim sempre perigoso) buscando desestabilizar o processo eleitoral e preparando a Suprema Corte caso o processo siga o rumo judicial.
A eleição dos próximos dias, como vários comentaristas têm destacado, é uma das mais decisivas das últimas décadas, pois não só ameaça a democracia norte-americana como pode determinar rumos nefastos para todo o mundo ou uma esperança de retomada da posição democrática e de liderança responsável que os Estados Unidos exerciam no tempo do governo Obama. No que nos diz respeito, pode determinar rumos igualmente ainda mais nefastos do que os atuais, ou uma nova esperança para nosso país.
A psicanálise, desde Freud, nunca deixou de ser um saber subversivo, no sentido de que denuncia aparências que posam como realidades, fantasias que querem esconder os fatos e a hipocrisia que deseja se impor sobre as verdades, por mais dolorosas que sejam.
Assim, os líderes que nos servem mentiras como alimento psíquico, que pensam que podem enganar ao invés de expressar e exercer suas responsabilidades, estão de fato contribuindo para a erosão do tecido social, a divisão entre seus liderados, espalhando o desapontamento, mostrando nada mais que indiferença aos outros e falta de respeito aos limites da vida em sociedade.
Como os profetas do Velho Testamento, que não se cansavam de denunciar as más ações e as mentiras dos poderosos, temos hoje uma imprensa combativa e uma parte considerável da sociedade civil que acredita na frase que lemos em Coriolano, Shakespeare, 1608, “O que é a cidade, se não o povo”?
Qual é nosso trabalho diário como psicanalistas, senão a busca da verdade, por mais provisória, fragmentária, frágil e insegura que ela possa ser?
A contribuição psicanalítica para construir pontes e passagens nas diversas fronteiras em que vivemos, tema de nosso Congresso Virtual da FEPAL de 2020, ocorre de três formas: primeiro, tratando pacientes cujas transformações psíquicas podem produzir mudanças possíveis em si mesmos e talvez em outras pessoas; segundo, através da reflexão sobre essas complexas questões, em conjunto com outras disciplinas, utilizando as teorias psicanalíticas; terceiro, através de atividades e iniciativas conjuntas em que possamos utilizar uma escuta aberta que permita corrigir percepções distorcidas e aumentar a capacidade de tolerância e identificação com os outros.
Por mais assustadora que seja a realidade presente, em que nos movemos entre os vírus da pandemia e do autoritarismo, nossas armas por excelência, a palavra e a escuta, já enfrentaram e continuarão a enfrentar todos os tipos de sons e fúrias.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
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