O fim dos cabides ensanguentados (Pelo menos na Argentina)

Observatório Psicanalítico – OP 215/2020

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

O fim dos cabides ensanguentados (Pelo menos na Argentina)

Aline Santos e Silva (SBPdePA)

Tomei contato com um aborto, pela primeira vez, aos 14 anos, no longínquo final dos anos 80. De modo quase inaudível, começou a circular pela escola a notícia da colega grávida. Olhos arregalados e frio na barriga. Nos próximos dias, mais uma notícia: o namorado havia conseguido comprar, numa espécie de “mercado negro” uma medicação indicada para o tratamento de úlcera gástrica que tinha efeito colateral abortivo. Ela tomou e conforme me relatou depois, padeceu sozinha das dores físicas e psíquicas da interrupção gestacional. Eu tinha 14 anos, ela 15: olhos arregalados, mãos dadas e uma profusão de lágrimas. 

Nestes 30 anos que separam essa história da data de hoje, acompanhei várias passagens similares, na vida pessoal, na clínica privada e no trabalho em comunidade. O aborto é praticado via medicação ou, pasmem, com a utilização de cabides ou agulhas de tricô introduzidos no canal vaginal. Ou, então, profissionais fazem o procedimento em clínicas clandestinas. 

Essa história voltou ao meu pensamento hoje após tomar conhecimento de que, em decisão histórica, o senado da Argentina aprovou o direito de cada mulher decidir sobre o aborto até a 14ª semana de gestação. Há apenas 2 anos o mesmo projeto foi derrotado. Graças à pressão popular, o aborto, para nossas hermanas,  pode se tornar seguro, legal, gratuito e previsto em lei.

Algumas semanas atrás, já envolvida por esta discussão, recebi um pequeno vídeo de uma esquete de um grupo de humor argentino. Na esquete, a lei era aprovada e as mulheres saíam correndo pela rua: “foi aprovado, agora é legal, preciso ir  abortar.” A repórter questionava: “Mas estás grávida?” “ Não, mas me deu um desejo enorme, agora posso e vou abortar.” Achei a esquete engraçada e pertinente, mas o sorriso era agridoce. Sabe-se que nenhuma mulher passa incólume por uma perda gestacional, seja ela natural ou provocada.  O trauma persiste e, possivelmente, colore vivências pertinentes ao feminino, respingando em aspectos da sexualidade e da maternidade futura (caso ocorra). Mas o peso de uma gestação não desejada também é traumático e deixa marcas profundas naqueles envolvidos no processo: mãe, pai e o fruto dessa relação.

Enfim, frente a uma gravidez indesejada, ambas as saídas são complexas e de difícil sustentação. Quem pode decidir? Segundo a lei Argentina, aquela que carregará a gestação e, ainda hoje, em nossa sociedade, se encarrega, na maioria dos casos, da criação dos filhos: a mulher. E esta, me parece, é a parte transformadora da lei proposta. Na sociedade patriarcal, que ora tentamos desconstruir, o corpo feminino é considerado público. Pode ser objetificado, violado e ter que parir filhos mesmo que não os deseje. Pode também ser mortificado, como percebemos pelo número impactante de feminicídios ocorridos nesta semana natalina em nosso país. Dizer, em lei, que a mulher pode escolher o que fazer com a gestação não desejada, sem letras miúdas, é realmente uma mudança.

Cabe lembrar de Mary Wollstonecraft (1759-1797), filósofa e escritora inglesa, considerada uma das “mães” dos estudos feministas. É de sua autoria a potente frase: “Não desejo que as mulheres tenham poder sobre os homens, e sim, sobre elas mesmas.” Duzentos anos depois, creio que Mary estaria sorrindo ao ver a maré verde na Argentina.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

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