Observatório Psicanalítico 52/2018
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
O feminino e a cultura
Almira Rodrigues (SPBsb)
Recentemente participei do debate “O Feminino e a Cultura” promovido pela Comissão de Comunidade e Cultura da Sociedade de Psicanálise de Brasília. Procurei desenvolver algumas reflexões e senti uma grande dificuldade de escolher uma trilha para a minha fala. Isso porque falar de feminino e cultura nos reporta a inúmeras possibilidades: mudanças na condição das mulheres e nas relações de gênero; diversidade e migrações sexuais e de gênero; inovações científico-tecnológicas que possibilitam intervenções nos corpos; movimentos LGBTIQ em defesa do desejo e dos direitos das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trangêneras, intersexo, queers; violência de gênero (feminicídios, espancamentos, estupros e assédio sexual de mulheres cis, trans, travestis); violência contra os sujeitos que vivenciam práticas sexuais diferentes da heteronormatividade; preconceitos e discriminações contra as mulheres e sua exclusão dos espaços de poder e de decisão. Enfim, um mundo de opressões e desigualdades, mas também de lutas e de conquistas por justiça, por igualdade de direitos e de oportunidades, por relações de gênero mais fraternas. Alguns países estão mais avançados nessas conquistas, principalmente no que se refere aos direitos sexuais e reprodutivos. Outros convivem com situações de muito terror: meninas que sofrem mutilações genitais (3 milhões por ano no mundo) e meninas entregues a casamentos forçados (12 milhões por ano no mundo); mulheres feitas escravas sexuais, castigadas por leis elaboradas pelos homens, e privadas do direito à instrução e à formação profissional.
Lembro que somente em 2017, depois de mais de um século da criação da IPA, por Freud, em 1910, temos uma Presidente, a psicanalista argentina Virginia Ungar. E também que o 51º Congresso Internacional da IPA, a realizar-se em 2019, em Londres, terá como tema “O feminino”. Será uma grande oportunidade para repensarmos como a psicanálise vem lidando com o feminino e a feminilidade, esta, com certeza, noção das mais complexas. Alguns psicanalistas enfatizam a feminilidade originária, ponto de partida, associada ao desamparo constitutivo de todo ser humano; outros pensam a noção como ponto de chegada, fruto do desenvolvimento psicossexual e da identificação com o feminino. E aí, nos perguntamos: o que vem a ser o feminino e a feminilidade? Podemos falar de essências e universais a respeito? Acredito que não, que estas representações são sempre construções de determinados tempos e espaços.
E em tempos de pós-modernidade – cuja lógica é estudada pela psicanalista Letícia Glocer Fiorini em seus trabalhos sobre sexualidade e gênero – considero que a perspectiva da pluralidade e da diversidade é um valor positivo e inovador. Nesse sentido, podemos pensar: em múltiplos femininos, com diversos corpos, identificações, desejos, projetos, parcerias os quais encontram mais espaços para existirem; em problematizar o binarismo feminino-masculino, tão profundamente arraigado na sociedade; e no não alinhamento automático entre corpo sexuado, identidade de gênero e desejo/prática sexual. Esperamos que as múltiplas psicanálises possam realizar escutas sensíveis dessas novas apresentações sexuais, de gênero, familiares e de parentalidade. Freud dizia que o biológico constitui um pano de fundo para o psíquico (o ego é corporal). Precisamos considerar que as culturas constituem igualmente outro pano de fundo e, parafraseando, podemos dizer que o ego é também social. Aliás, este chamado veio de Marian Alizade, uma das fundadoras e primeira Coordenadora do Women and Psychoanalysis Committee – COWAP – Comitê Mulheres e Psicanálise da IPA, criado em 1998. Alizade cunhou de 4ª série complementar os fatores sociais, culturais, históricos e políticos destacando a sua enorme relevância na construção da subjetividade e do psiquismo dos sujeitos.
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