O eterno retorno da intolerância brasileira

Observatório Psicanalítico – 134/2019

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

 

O eterno retorno da intolerância brasileira 

Lina Schlachter Castro (SPFOR)

 

Diante de um crescimento de atos abertos de intolerância, especialmente desde as eleições de 2018, evidenciado por um aumento acentuado de agressões à população LGBT+, à população indígena, feminicídio, discursos de ódio online e crimes de discriminação racial, encontramo-nos frequentemente estupefatos com golpes à nossa civilização que deveria, como nos ensina Freud (1930), ter como uma de suas principais metas a regulação dos vínculos sociais. Havemos, no entanto, de nos questionar como esse problema aparentemente atual refere-se, na realidade, a questões ainda não elaboradas de nossa herança autoritária.

 

A nossa história já se inicia com ataques brutais ao outro. De acordo com o IBGE (2000), havia mais de 2 milhões de nativos indígenas no Brasil pré-colonial. Muitos anos depois, em 2010, a população indígena era de somente 896.917 (IBGE, 2013), o que evidencia um verdadeiro genocídio. Quando não imediatamente assassinados, indígenas eram frequentemente expropriados de suas terras e escravizados. Até hoje, há um silenciamento em torno dos crimes cometidos contra o povo indígena, tanto no passado quanto na atualidade, o que tem como possível resultado uma corriqueira indiferença de parte da população às suas lutas.

 

Os negros também foram profundamente atingidos pela nossa crueldade. Após serem escravizados por quase 400 anos, eles continuaram marginalizados, devido à inexistência de políticas públicas que favorecessem sua integração à sociedade. Há de se ressaltar que houve tentativa de apagamento do período de escravidão. Na República Velha, em 1891, Rui Barbosa, então ministro da fazenda, emitiu uma ordem, que foi atendida, de queimar todos os arquivos relativos à escravidão. Tal ato certamente colabora com a existência, ainda atual, de brasileiros que trabalham em condições semelhantes à escravidão, o que traz à tona questões morais e éticas de nosso povo que jamais poderiam ser resolvidas apenas com a sanção de uma lei.

 

Outro período brutal de nossa história foi a ditadura (1964-1985), um regime que censurou, torturou, assassinou e exilou discordantes. A Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada para examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas durante o regime, estimou que entre 1964 e 1985 houve pelo menos 191 mortes por execução sumária e ilegal ou decorrentes de tortura, perpetradas por agentes a serviço do Estado, 243 desaparecimentos forçados e, entre 1964 e 1977, no mínimo, 6.016 denúncias de tortura (CNV, 2014).

Apesar das várias evidências, apenas em 2014 se tem notícia de um ato oficial do Estado Brasileiro, através de um Ofício do Ministério da Defesa encaminhado à CNV, reconhecendo a responsabilidade do Estado pela ocorrência de graves violações de direitos humanos no período ditatorial. Porém, naquela oportunidade, a Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro e a Força Aérea Brasileira relataram que não havia evidências suficientes de que tais crimes aconteceram em suas dependências. Sem tal reconhecimento, inviabilizaram-se quaisquer atos significativos de reparação e de justiça às vítimas do regime.

 

Por fim, proponho que pensemos no assassinato da socióloga e política brasileira Marielle Franco como um exemplo atual de nossa história brutal. Marielle era feminista, negra, homossexual, moradora de favela e lutadora militante dos direitos humanos. Mais de um ano após sua morte, o crime continua impune. As tentativas de silenciamento são diversas: não houve cuidado para preservação de provas no carro em que ela estava, câmeras que ficavam no trajeto em que ocorreu o assassinato estavam desligadas, imagens que possibilitariam a identificação dos criminosos foram perdidas, a arma utilizada não foi encontrada, entre outros. Com tantas informações apagadas, ocultadas e adulteradas, a solução do crime parece distante.

 

Considerando que, assim como Winnicott (1950) sugere, é necessário, de tempos em tempos, uma sociedade ficar deprimida, ou seja, admitir que há um conflito dentro de si mesma, para assim haver um desenvolvimento em direção à democracia, ressalto que a nossa sociedade faz exatamente o contrário, promovendo raras iniciativas que produzam o pleno reconhecimento de nossos conflitos internos. Isso se evidencia pela persistência de resistências ferozes, que vão desde omissões, queimas de arquivos, até não-reconhecimentos de fatos relevantes, impedindo que relembremos o que nos assolou. Como resultado, a nossa brutalidade acaba por nos perseguir. Dessa maneira, vamos vivendo a nossa história com eternos retornos de experiências reprimidas, ou talvez, de maneira mais radical, de experiências cindidas.

 

A psicanálise, ao propor que é possível uma maior tolerância e respeito ao diferente quando nos tornamos conscientes de nossa própria maldade, compromete-se com o nosso avançar enquanto civilização. Afinal, só há democracia quando o país procura ativamente acolher as minorias e tratar sua história de conflito e discriminação a partir de honestas rememorações, que reconheçam sua responsabilidade pelos crimes cometidos.

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

 

Pintura “O silêncio consome cada movimento”, Andrew Salgado (2011)

 

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