Observatório Psicanalítico – 90/2019
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
Notas sobre a questão da regulamentação
Wilson Amendoeira (SBPRJ)
A discussão de propostas sobre a regulamentação da Psicanálise ocorre desde a década de setenta.
Sempre foram combatidas pelos psicanalistas, pois nenhuma delas atendia as especificidades da formação e da prática psicanalítica.
O que há, então, de tão diferente agora, se já houve várias tentativas de regulamentar a profissão e todas elas foram rechaçadas pela comunidade psicanalítica brasileira e arquivadas?
Vivemos, em nosso país, um momento crítico na representatividade política. Os atores que estão movimentando as decisões políticas e as pondo em execução, trazem insegurança, pois os fundamentos de suas escolhas vão de encontro às normas que fazem parte de nossa tradição cultural, dos nossos costumes e dos nossos avanços civilizatórios. Ao lado deste quadro os evangélicos, com os equivalentes comerciais, sem compromisso com os padrões de formação analítica, dizem ter formado cerca de 25000 ditos psicanalistas.
Como sabemos, preocupado com a formação de futuros analistas e procurando evitar distorções e descaminhos na Psicanálise, Freud funda, em 1910, a International Psychoanalytical Association – IPA. Seu objetivo era criar normas para a formação analítica e enfatizava a exigência de que ninguém deveria praticar a Psicanálise se não tivesse adquirido este direito através de uma formação específica. Os padrões estabelecidos definem o processo de formação como sendo composto por uma análise pessoal, feita com um analista qualificado, seus estudos teóricos e a supervisão do seu trabalho clínico inicial.
Esta tríade configura a formação como um ofício, e o psicanalista aprende e ganha qualificação em oficinas – os institutos de formação – onde, artesanalmente, no contato com outros analistas, desenvolve sua análise pessoal, realiza seus seminários para o aprendizado teórico e técnico e tem o seu trabalho supervisionado. Esta qualificação, portanto, não se ajusta aos modelos que podem sofrer algum tipo de certificação por instituições de ensino ou órgãos reguladores públicos; se existe um indicador, ele será, certamente, o de qual é a instituição que forma, quem são seus componentes, que padrões são seguidos.
As instituições psicanalíticas são um “lugar” para compartilhar experiências, desenvolver estudo, oferecer suporte à formação psicanalítica, partilhar a experiência de psicanalisar pessoas, bastante solitária, com seus pares.
Encontros regulares, seminários, discussões clínicas, congressos formam a agenda dessas instituições, conclamando cada um dos seus membros a dar o testemunho da sua experiência.
A transformação do campo psicanalítico inicia em 1962, com a regulamentação dos cursos de psicologia. Os psicólogos, como uma extensão natural da formação universitária que tinham tido, procuraram as nossas instituições, as vinculadas à IPA, para fazer sua formação.
Em algumas cidades, as nossas instituições reservavam a formação somente para médicos. Isso levou a que, por exemplo, no Rio de Janeiro, se constituíssem outras instituições que acolheram o grupo de psicólogos interessados na formação, em moldes similares aos preconizados pela IPA.
À medida que o tempo passou, essa demanda aumentou e, nos meados dos anos 70, chega o movimento lacaniano ao Rio de Janeiro e Campinas. Abriu-se, assim, outra vertente.
Estas são, digamos assim, as três grandes vertentes do grande número de instituições (sessenta e cinco subscreveram o Manifesto da Articulação lançado em 2001) espalhadas pelo Brasil, que praticam psicanálise, que formam psicanalistas e são reconhecidos por todos nós como pertencendo ao campo psicanalítico e que são as que se apresentaram para constituir a Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, no ano 2000.
Recentemente, a Diretoria da Febrapsi se reuniu em Belo Horizonte, quando discutiu-se possíveis linhas de evolução da questão.
Como disse antes, as principais possibilidades que se apresentam são: de sistemas de acreditação (p. ex: o uso da marca psicanalistas IPA), de alcance simbólico e que nos separa do todo; regulação (criarmos uma entidade que credenciaria todas as instituições consideradas como pertencendo ao campo psicanalítico. Esta entidade avalizaria as instituições componentes e seria a interface com a sociedade), cobertura de instituições universitárias (mestrados, doutorados, pós-doutorados). Já a regulamentação implica a definição de parâmetros mínimos para que um profissional seja reconhecido como psicanalista e a criação de órgãos e procedimentos assemelhados aos que regulamentam outras atividades, com a dificuldade de enquadrar a psicanálise dentro desta moldura.
É fundamental que qualquer proposta que parta de nós, inclua a totalidade dos que se reconhecem psicanalistas, por terem a formação analítica apoiada no tripé (análise pessoal, estudo teórico e trabalho supervisionado) e, numa busca retrospectiva da linhagem analítica (uma árvore “genealógica” dos analistas antecessores), estariam ligados a Freud.
Acredito que o trabalho de articulação das entidades psicanalíticas pode levar à construção de mecanismos de regulação da sua própria prática. Os psicanalistas avançaram muito nesses anos, sob os pontos de vista clínico e teórico. Agora, a demanda é por novos avanços, avanços políticos, de forma coletiva, arregimentando apoios, principalmente na cultura e nas instâncias legislativas, para que não sejam aprovadas propostas que firam nosso ofício.
Entendemos que a universidade, o Conselho Federal de Psicologia, o Conselho Federal de Medicina, as instâncias legislativas não podem responder pela psicanálise, não podem legislar sobre a nossa formação.
Para defender esta bandeira precisamos da participação maciça e efetiva de todos nós.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)