MERCURY – Bohemian Rhapsody – 1946 -1991

Observatório Psicanalítico – 77/2018

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

MERCURY – Bohemian Rhapsody – 1946 -1991

Dora Tognolli (SBPSP)

 

O filme recente – Bohemian Rhapsody, nos oferece uma oportunidade de falar de Freddie Mercury e o legado de sua passagem pelo século XX. Analisar sua carreira, sua sexualidade, sua morte quase trágica e precoce em função da AIDS, é correr um grande risco: estaremos sujeitos a psicologismos, moralismos, explicações ideológicas, teorias sobre confusão entre vida pública e privada, falta de limites, amores bandidos, poder nefasto da mídia e outros temas inúmeros. O filme também nos serve como gatilho para refletirmos sobre a politica dos anos 70/80 e as transformações culturais intensas que atravessaram as últimas décadas do século XX, que tiveram em Freddie Mercury um protagonista importante.

Já falar de sua poética e do que ela evoca, nos mostra um caminho para pensar. Fiel ou nem tanto à sua biografia, o filme nos apresenta um garoto exótico e excêntrico. Exótico na aparência, na origem, na religião familiar, remanescente de uma cultura oriental rara, o zoroastrismo. Freddie, nascido Farrokh Bulsara, parece escapar a tudo, construindo com muita potência um espaço extremamente inusitado, forjado com seus talentos e desejos. Excêntrico: fora do centro, do centro da mesmice e com uma alta capacidade de marcar sua singularidade. Excêntrico dentro do próprio grupo de rock que criou, o Queen.

Cabe um destaque especial para seu corpo. Para quem não sabia, o filme revela que Freddie nasceu com um defeito: dentes a mais na boca (36: 4 a mais que o normal), o que lhe conferia um aspecto estranho. Ficamos sabendo que Freddie recusa alterar sua genética, e mantem todos aqueles dentes que marcam suas mandíbulas, porque tinha uma teoria de que o tamanho avantajado de sua cavidade bucal era responsável pela potência de sua voz, tão elogiada. Fetiche? Talento? Marca divina?

Além dessa peculiaridade, Freddie não é apenas uma bela voz: é um corpo que se expressa, se lança a nossos olhares e assombra pelo erotismo e força expressiva. Não basta ouvi-lo: é preciso ver seu corpo se agitar e ocupar todo o espaço do palco e da plateia.

Em vários momentos de sua obra, Freud coloca uma questão: qual a fonte de onde os artistas retiram suas fantasias, e como conseguem despertar-nos emoções tão intensas? Freddie Mercury sem dúvida despertou intensas emoções em diversas plateias e revelou uma poética inusitada para um garoto que veio de um país exótico e se destacou na cena musical tal qual um Elvis Presley, um homem que como ele faz uso abusado de seu corpo, de seu erotismo e sensualidade em grau máximo.

Na delicada temática da sexualidade, o filme mostra Freddie encarando sua bissexualidade, junto à namorada amiga de toda a vida, herdeira de sua mansão, a quem dedicou a música Love of my life. Momentos acompanhados de angústia, tão familiar a todos nós, mas que no filme ganha ares trágicos. Homossexual? Gay? Bissexual? A sexualidade está em questão, no corpo de Freddie e na política dos corpos dos anos 80.

Além de seu talento, criatividade e voz especial, a imagem corporal de Freddie Mercury ficou entre nós, representando uma época importante e carregando rupturas que surgiram com força. Interessante observarmos, no filme, as transformações que o corpo e a aparência do artista sofrem: abandona os cabelos longos dos roqueiros, e que seu grupo musical conserva, e surge com um corpo masculino viril e polimorfo, que expõe em roupas marcantes e pouco discretas. Músculos, coreografias, levantes, convite a um banquete dionisíaco, que as plateias enormes aceitam de bom grado. Freddie se oferece a seus fãs, sem medo e com coragem.

Nos assuntos da paixão e da arte, caracterizados por grandes intensidades, sabemos que há um fio tênue, embora pouco perceptível, que liga amor e morte. Esse fio só é lembrado nas grandes tragédias. Freddie foi um dos primeiros ídolos que perdeu a vida ainda jovem e repleto de ideias por conta da AIDS. Hoje, temos mais recursos da medicina para enfrentar esse mal, mas os tempos sombrios e estranhos que se avizinham, parecem não se mostrar tão favoráveis a aceitar a singularidade dos artistas e das plateias…

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

Categoria: Cultura
Tags: arte | Jornada | Prazer | Rock | sexualidade | Transformações
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