Observatório Psicanalítico – 91/2018
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
Lei, ora, a Lei ?
Plínio Montagna (SBPSP)
Lei denota uma relação fundamental entre fenômenos. Circunscreve possibilidade, impossibilidade ou probabilidade de um evento ocorrer. Compreender as leis da natureza permitiu transformações extraordinárias na vida humana, na face da Terra.
O mesmo se diga, de certo modo, das leis que regem as relações humanas e nosso mundo interior. O conhecimento vivo, vivencial, deste, amplia nossa resiliência individual para lidarmos com os embates que a vida nos presenteia. Nossa prática psicanalítica não cansa de demonstrá-lo.
A lei se instala precocemente no desenvolvimento de cada um. No campo da angústia de castração, a assim chamada castração simbólica se oferece como elemento organizador e estruturante da vida psíquica individual.
Os campos do conhecimento procuram a lei primeira, imutável, que pode ter originado as outras.
Freud apresentou, em Totem e Tabu, a fantasia antropológica da passagem da natureza à cultura se dar pela primeira lei, relacionada a parricídio e incesto. É pressuposta. Restrições a acasalamentos determinados são universais, variando quais deles, em quais culturas. Portanto, são também culturalmente determinados. Universalidade e variação com a cultura geram o status de pertencentes tanto à natureza quanto à cultura. Seria a primeira lei?
O austríaco Hans Kelsen, tido por alguns como “o jurista do século XX”, freqüentou a Sociedade Psicanalítica de Viena e dialogou com Freud, na década de 1910. Procurava uma norma fundamental, anterior às outras, a partir da qual o ordenamento jurídico se explicitasse. Seria uma norma fundante, fictícia porque não poderia ser provada, mas sim pressuposta. Afirmada como premissa maior, sua validade não pode ser colocada em questão.
Se a imaginamos originada do inconsciente, ela não estaria em sintonia com a fantasia antropológica de Freud ?
No campo das relações intersubjetivas, a Lei é uma técnica que possibilita a coexistência entre as pessoas. Dá contornos ao contrato social. Instrui os indivíduos a reger suas práticas cotidianas de acordo com o que é aceitável ou não pela sua sociedade.
Para Freud, só é possível a vida humana em comum quando a maioria é mais poderosa do que cada um dos indivíduos. O Direito enfrenta a força bruta, com o sacrifício de pulsões, pelos indivíduos.
Isto se refere à primazia do ego, que não se deixa tiranizar por id ou superego. Questões espinhosas podem ser pensadas e discutidas sob a égide das funções egoicas.
Constituições, ou cartas constitucionais, sistematizam as leis maiores das nações, ordenadoras das outras. Elas emolduram a vida e os processos intra e intersubjetivos num dado espaço analogamente ao que faz o enquadre, o setting, no processo analítico. Este não pode se dar sem um enquadre, o qual, por sua vez, influi muito no processo. Organiza e contextualiza a relação dual analista-analisando, configura uma relação continente/contido a ser dialeticamente examinada.
O enquadre varia em flexibilidade, com o analista ou a dupla; é de preferência que seja internalizado. Refere-se a um conjunto de normas que compõe uma “instituição “. É a referência que dimensiona também “direitos e deveres“ e que respeita as diferenças. Quanto maiores os ataques a ele, maior a importância de sua proteção e salvaguarda. Há que preservar a relação e seu desenvolvimento. Winnicott é um dos psicanalistas que acentuam a importância da moldura, do setting, em todas as situações da vida. Fronteiras, espaços, limites, nas relações com o objeto, estão sempre em jogo, para ele e tem a ver com o enquadre.
O setting pode variar muito, mas haverá algo além do qual não podemos negociar, romperia nossos fundamentos.
O respeito a diferenças e a direitos fundamentais do ser humano tem sido timbrado por movimentos “constitucionalistas“, democráticos, que põem em pauta e levam em consideração identidade e diferença. Suportar a dor da incompletude, da diferença e da presença do outro faz parte do contrato social.
A identidade se plasma no contato com o outro, necessariamente diferente. Aceitar o outro e as diferenças também se referem a um estatuto ético. A psicanálise tem a sua ética. Tomemos a visão kleiniana, por exemplo. A ética é implícita na passagem para a posição depressiva, na consideração com o outro, nas formas como o sentimento de culpa se manifesta. A gratidão também diz respeito a ética.
Nós somos um pais múltiplo, dum povo de composições diferentes, de diferentes origens. É somente acolhendo diferenças e as respeitando que poderemos nos afirmar como um povo que se auto respeita. Ainda que com defeitos, nossa chamada “constituição cidadã”, de 1988, tem essa matiz respeitosa de diferenças e direitos humanos fundamentais.
Como ataques a nosso “setting constitucional“, no momento do país, observamos ditames atacando diferenças, “pisando“ nos mais indefesos, cultivando o ódio contra as eventuais criticas ou aos críticos, estes chamados de comunistas ou esquerdopatas que devem ser combatidos.
Essa homogeinização e cultivo do ódio, como lembra Adorno, é um artifício utilizado pelo fascismo, sabedor, do poder de união, mostrado por Freud, que o ódio a um mesmo objeto pode trazer. Defrontamo-nos com o desafio de trazermos, a cada dia, nossas discussões à primazia da função pensamento, da esfera egoica, em outros termos.
As conquistas que nos levaram a estipular como lei a promoção do bem de todos, sem distinção, de banir tortura ou outros tratamentos desumanos, o respeito a diferenças, diz respeito à constituição e à ética da psicanálise.
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