Israel: a construção de um olhar…

Observatório Psicanalítico 51/2018

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

 

Israel: a construção de um olhar…

Daniela Boianovsky (SPBsb)

 

Desembarco em Israel, uma corredeira interna de sensações transborda numa viva inquietação: que rio é esse? Onde desembocarão suas águas? Aos poucos, surge a imagem de um mar feito de registros familiares longínquos, sabores, sonoridades, expressões, símbolos que reconheço de um lugar que, agora percebo, estava até então adormecido. Ancestralidade que parece pulsar e trazer à tona impressões de uma identidade. Herança de pais, avós, bisavós, de uma família/povo inscrita no meu imaginário, pedaços da minha história encontram um continente.

Tomada por essa emoção, vou flanando pelas ruas, pensando em como foi justamente pelo cultivo à memória que aquele povo sobreviveu por milênios de perseguição, mantendo-se vivo através do compartilhamento de suas tradições e de seu conhecimento, num denominador comum que alinhavou tribos dispersas pela diáspora judaica. Garantia de diversidade e debates permanentes: escuto que em cada dois israelenses, há três opiniões diferentes.

Dentro dos muros da cidade antiga de Jerusalém, respiro a vibração das paixões e dogmas que deram origem ao judaísmo, islamismo e cristianismo: um caldeirão onde fervem disputas, crenças e narrativas. Ao caminhar por aquelas ruelas, percorrendo com alguma liberdade os diferentes “territórios”, o que chamou minha atenção foi justamente a possibilidade (sonho?) de convívio daquele mosaico, o paradoxo ao encontrar torres de mesquitas misturadas às bandeiras do Estado de Israel, multidão de turistas, locais e religiosos diversos cruzando, de um lado a outro, as ruas estreitas que interligam os diferentes setores daquela cidade murada. Guerra e paz. Ponte e abismo. Povo e poder. Efervescência pura. Ilusão? Ingenuidade? Desejo? Esperança? Deixo aquelas ruas habitada por inquietação e muita história, quem sabe consigo vagar, sem respostas, pelas andanças que tenho pela frente para tentar elaborar tamanha ebulição…

Visitar Israel é visitar milênios de história, conflitos, contradições, diversidade humana, capacidade empreendedora e força de sobrevivência. Navegando por seus caminhos, encontro, na nudez do deserto do Negev, uma beleza em forma de curvas e cores, uma provocação à divagação; as pequenas aldeias de beduínos me desafiam a sonhar a coexistência das diferenças, as placas de trânsito nas três línguas (hebraico, árabe e inglês) parecem simbolizar este sonho, o desejo de uma divisão pacífica daquela terra em dois Estados que contemplem israelenses e palestinos em suas respectivas soberanias: pertencimento e direito a existir em território sagrado para ambos. Cercas que apontam para vizinhos inimigos à existência de Israel, assentamentos indevidos em território palestino, confrontos violentos na fronteira são imagens que invadem o meu sonho e me trazem para a realidade de um nó que ainda está longe de ser desatado. Penso em Yitzhak Rabin e Anwar Sadat, mortos quando lutavam pela paz. Uma luta perigosa. Perco o fôlego.

Em Tel Aviv percebo que, estar em Israel, é também sentir a vida pulsante que parece brotar de toda aquela turbulência, da percepção, talvez, da vulnerabilidade e do sabor de estar vivo. A vitalidade que testemunho em suas ruas, esquinas e praias, nos inúmeros cafés, bares e restaurantes sempre lotados, nas bicicletas que cruzam a cidade, nos habitantes de todas as idades que ocupam os espaços públicos num cenário em que a violência urbana é praticamente inexistente, é contagiante. Recupero a respiração ao testemunhar a mobilização da sociedade civil israelense em oposição às ações governamentais quando estas ferem os direitos humanos ou desrespeitam os interesses democráticos, assim como sua articulação em inúmeras organizações cujo objetivo é a aproximação com os palestinos também dispostos a construir pontes e alternativas ao conflito me devolve a capacidade de sonhar. Vejo a paciente construção de uma nova subjetividade, de um olhar onde o outro é sujeito em suas diferenças, e não apenas objeto depositário de temores e do insuportável terror interno alheio, um sujeito para além dos estereótipos, livre para pensar e ser pensado fora dos muros do preconceito e da intolerância absoluta praticada por grupos extremistas. Uma batalha que, infelizmente, encontra pouco espaço na mídia internacional, cuja cobertura reforça o desconhecimento das nuances do conflito e da realidade na região, gerando uma visão simplista que separa os grupos em vítimas e algozes.

Deixo o país com a certeza de que pouco se sabe a respeito de sua enorme complexidade, e com as imagens contrastantes da intolerância e violência na fronteira com a Faixa de Gaza, de um lado, e a vitalidade que encontrei em Tel Aviv de outro, imagens que, como uma metáfora, me remetem aos diferentes estados da mente, àqueles que sabemos como fronteiriços, cindidos, e àqueles onde encontramos a capacidade de promover a integração entre amor e ódio, vida e morte.

Desembarco no Brasil. Na bagagem, muitas reflexões. Uma delas, a “guerra” que travamos em nosso país. Um país dividido, ferido por um golpe que vem continuamente derretendo as nossas instituições. Penso no sorriso e na luta interrompida de Marielle Franco, no bombardeio ao direito de todos a uma vida digna, nas prisões abarrotadas de jovens negros, na violência urbana e na criminalização da pobreza, em nossa memória atacada pela crescente adesão a um candidato à presidência defensor da ditadura militar e na segregação social de uma sociedade estruturada em torno de sua herança escravocrata. Penso em nossos sonhos roubados e naqueles que precisamos sonhar.

Sinto o ar rarefeito. Cruzei meio mundo. Sobrevoei a Europa, onde a intolerância, o antissemitismo e o fanatismo crescem assustadoramente. Não está mesmo fácil respirar em nosso planeta…

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores.)

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