INTERVENÇÃO: o amor não quer dizer grande coisa

Observatório Psicanalítico 71/2018

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

“Intervenção: o amor não quer dizer grande coisa” 

Luis Carlos Menezes (SBPSP)

 

O filme, de Gustavo Aranda, Tales Ab´Saber e Rubens Rewald, reúne uma sequência de depoimentos, situados visivelmente num contexto de crise aguda. O pacto social democrático parece estar à beira da ruptura para dar lugar a um regime comunista.

A breve sequência do início do filme explicita isso: o jornalista (Reinaldo Azevedo) em um evento no Clube Militar, diz que há dois anos ali falava sobre “liberdade de expressão”, enquanto – na mesma ocasião – no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo se discutia o “controle social da mídia”. Destaca a curiosa situação de estarem falando de “liberdade de expressão” num clube militar, enquanto que numa entidade civil de jornalistas, sob o eufemismo de “controle social da mídia” se falava de formas de estabelecer restrições à liberdade de imprensa e, portanto, à liberdade de expressão.

Nos deparamos de saída com a oposição entre democracia e ditadura no centro da vivência de crise subjacente aos depoimentos que vamos ouvir ao longo do filme, marcados pelo medo de uma ditadura comunista. Os depoimentos se situam num momento de crise política grave, 2015/2016, agravada por uma rápida e imprevisível retração da economia que parecia escapar ao controle de um governo há pouco tempo reeleito.

O conjunto dessas falas enlouquecidas de pessoas muito assustadas e enraivecidas tem para mim um grande interesse sob dois ângulos que se superpõem em parte: põem a nu o tema dos valores e ideais que nos estruturam, mas que correm o risco de derrapar, em certas circunstâncias, para uma cegueira exaltada, febril, ativista, brutal. A outro, diz respeito à interrogação sobre o que viria a ser um pensamento de extrema direita no Brasil de hoje. No que vemos no filme talvez se mostre em gestação, inarticulado. 

O traço mais evidente é a oposição à ideologia e a um projeto suposto de instalação de regime comunista no País, mas há também a rejeição preconceituosa e moralista dos avanços civilizatórios que estão ocorrendo entre nós no plano dos costumes e das mentalidades, além de uma disposição para aceitar regimes autoritários não democráticos. Recusa reativa, portanto, à uma ditadura comunista, mas pouco apreço pela manutenção e avanços de nossa democracia.

Voltando ao primeiro ponto, ao que chamei de enlouquecimento dos ideais nas falas aqui reunidas recorro ao psicanalista francês, René Kaës, que, na tradição dos terapeutas de grupo, tem chegado a formulações valiosas para esse tema; ele se estende também ao que poderíamos chamar de psicopatologia dos preconceitos.

O que destaco na contribuição de Kaës é que as pessoas podem se desestruturar quando algo vacila na cultura e na história, pondo em crise referências estabelecidas que se abrem para um horizonte incerto, indefinido, arriscado, levando-as a uma condição que o autor chama de “posição ideológica radical”. 

Para o que nos interessa aqui, Kaës caracteriza como um estado psíquico baseado em certezas absolutas, que se contrapõem ao incerto e desconhecido, travando a capacidade para pensar de forma ponderada, capaz de levar em conta os dados da realidade, daquilo que é percebido pela pessoa; instala-se, ao contrário, um modo de pensar em bloco, baseado na recusa  das percepções que impede de nuançar e avaliar a efetiva extensão dos perigos e dificuldades. Instala-se a urgência de uma ação decisiva, única. No caso dos depoimentos, essa ação seria a intervenção militar salvadora.

São idéias imperativas, desconfiadas (no filme, são frequentes idéias conspiratórias, às vezes, francamente delirantes como a da maçonaria, ou da participação da Rússia e da China numa intervenção militar), que não admitem nenhuma diferença, nenhuma alteridade. Essa condição, diz ele, “está subentendida por angústias de aniquilamento iminente” (tão perceptíveis nos depoimentos) e por “fantasias grandiosas de tipo paranoico” (idem, em alguns).  

Tentando cercar de alguma inteligibilidade o colapso “da capacidade de amar” no vínculo social que ouvimos nessas falas, encontro em uma psicosocióloga, Jacqueline Barus-Michel, igualmente a referência à “fragilização coletiva” em situações de crise que põe a nu o que ela chama de “núcleo psicótico desse coletivo” caracterizado como uma “ameaça de desagregação” que o leva – o coletivo – a ligar-se a um personagem com “defesas de tipo paranoico (rigidez defensiva), que se manifestam num discurso violento”, para restaurar em torno dele, segundo ela, “um sentimento de identidade reforçado”. Se nas falas aqui reunidas não há ainda esse “personagem”, poderíamos vê-lo, talvez, na autoridade militar implícita que, em sua chefia, detém o poder e a coragem de fazer “a intervenção”.

Essa observação, centrada na relação com a força e a violência de um chefe, faz algum sentido quando vemos o crescendo de raiva e de exasperação das falas quando alguma coisa indica que “os militares não vão intervir”, raiva que se volta contra eles e depois contra todos os brasileiros, atingindo um nível de violência extremo no caso da pessoa que vive no exterior já no final do filme. Ele termina dizendo que se algum brasileiro bater na casa dele, ele o receberá a tiros.

Termino mencionando uma entrevista do historiador inglês Richard Evans, grande conhecedor do nazismo, partido que, em novembro de 1932, nas últimas eleições livres, foi cooptado pelos conservadores para formar um governo de coalizão; esse assumiu em janeiro de 1933 e foi exercido com tal violência que não levou mais que seis meses para destruir a oposição e estabelecer a ditadura do partido nazista.

O historiador conclui, dizendo que: “a maneira pela qual os nazistas destruíram a democracia de Weimar e estabeleceram uma ditatura, seu desprezo pela verdade, sua supressão da liberdade de expressão e de pensamento, sua supressão da independência judicial e seu racismo virulento servem como advertência contra desenvolvimentos políticos comparáveis em nosso próprio tempo.”

Alerta que nos diz respeito se considerarmos a importância da manutenção e do fortalecimento de nossa própria democracia, recuperada desde 1985, evitando o canto das sereias das “democracias populares”, insistente e camuflado em uma certa ideologia esquerdista ou, o apelo – tema do filme – por uma nova ditadura militar. Só quem ficou privado da democracia por um tempo que parecia sem fim, sabe o quanto é inestimável, inclusive como condição para se alcançar avanços sociais nos mais variados frontes dos desafios sociais e culturais de nossa atualidade.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

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