Observatório Psicanalítico – 206/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Imunização e realidade psíquica
Sylvain Levy (SPBsB)
A imunização é uma revelação inconsciente corporal. Faz despertar a capacidade de produzir anticorpos escondida em cada um dos vacinados. Não é a toa que Bolsonaro é contra a vacinação obrigatória. O despertar de consciências e de conhecimentos é, foi e sempre será ameaçador para qualquer autoritarismo.
Como diz o aforismo hegeliano, apropriado pelo materialismo dialético, a quantidade modifica a qualidade: o aumento desmesurado da quantidade de ambição causou sua substituição por uma ganância pelo poder, mas sem medir sequências e consequências, sem necessitar de objeto a ser controlado ou objetivo a ser alcançado. É o poder pelo poder, ou fantasia de onipotência em estado puro. Com esse desejar, o presidente e seus correligionários se auto-alimentam em reciprocidades delirantes, coletando ideias isentas de realidade e teorias de conspirações que servem como justificativas de decisões já tomadas ou a serem implementadas.
A imunização é um procedimento antigo na área da saúde pública, tendo tido como inventor e precursor Edward Jenner, que publicou seu estudo sobre a vacina contra a varíola na Inglaterra, em 1798. No Brasil foi introduzida pelo Marquês de Barbacena em 1804, há 236 anos, portanto. A vacina é uma importante forma de imunização ativa (quando o próprio corpo produz os anticorpos) e baseia-se na introdução do agente causador da doença (atenuado ou inativado) ou de substâncias que esses agentes produzem no corpo de uma pessoa, de modo a estimular a produção de anticorpos e células de memória pelo sistema imunológico. Por causa da produção de anticorpos e células de memória, a vacina garante que, quando o agente causador da doença infecte o corpo dessa pessoa, ela já esteja preparada para responder de maneira rápida, antes mesmo do surgimento dos sintomas da doença. A vacina é, portanto, uma importante forma de prevenção contra doenças.
Um formidável estudo sobre a “Poliomielite no Brasil” organizado por João Batista Risi Junior evidencia, por gráficos, como as vacinações contra a pólio, tuberculose e sarampo fizeram com que a incidência dessas doenças caísse de forma significativa e rápida em vários países. Estudos similares por todo o mundo comprovaram a eficácia de vacinas contra diversos males, como difteria, tétano, coqueluche e varíola, entre tantas outras. A erradicação da varíola, aliás, foi o primeiro evento da história da humanidade em que uma doença foi eliminada da face da terra por mãos (e mentes) humanas. Não faltam histórias sobre essa experiência única de vacinação, tais como a do brasileiro, componente de uma das derradeiras equipes de vacinação, a qual foi sequestrada por guerrilheiros eritreus. Ao serem sentenciados à morte por serem “americanichs”, ele afirmou ser “brasilian”. Os guerrilheiros responderam: “Pelé, Pelé”, para o que ele gritou em resposta “my friend, my friend!!”. Toda equipe sobreviveu.
O Brasil, com o Programa Nacional de Imunizações, do Ministério da Saúde, é reconhecido mundialmente como um dos países exponenciais no campo da proteção da infância pela vacinação cujas mobilizações já obtiveram da OMS o certificado de erradicação da poliomielite e do sarampo. A queda no número de vacinados, desde 2015, porém, ameaça essas conquistas, sendo que a OPAS/OMS já retirou do Brasil o status de “país livre do sarampo”.
Em nosso país, a primeira lei de vacinação obrigatória data de 1904 – Lei 1261 – que institui a vacinação e revacinação contra a varíola. Em vários momentos da vida nacional esse tema mereceu abordagem legal. Na década de 70, por exemplo, havia uma lei que exigia a comprovação da vacinação dos filhos para garantir o recebimento do salário família. Hoje, a mesma exigência é pré-condição para o recebimento da Bolsa Família e consta no Estatuto da Criança e do Adolescente. Ou seja, já existe a obrigatoriedade de imunizar as crianças a partir da orientação das entidades sanitárias oficiais.
Sempre houve, no mundo todo, prevenções contra as vacinas. Mas foi em 1998, com um estudo publicado no Lancet, que a descrença na vacinação ganhou corpo com respaldo científico. Foi um estudo que associava o autismo às vacinas contra sarampo, rubéola e caxumba. Anos depois se descobriu que o estudo havia sido fraudado e que o autor havia pedido uma patente para uma vacina concorrente a que era aplicada. O Conselho de Medicina do Reino Unido considerou-o “inapto para exercer a profissão” e o Lancet se retratou, mas o estrago já estava feito e proliferaram organizações e entidades deblaterando contra a vacinação. Em muitos casos, o ataque se dá com o intuito oculto de, paralelamente, oferecer produtos curativos, milagrosos ou não, como alternativos às vacinas.
A partir das declarações de Bolsonaro sobre a não obrigatoriedade da vacina e a não utilização da variante da vacina que provém da China e está sendo produzida e testada em São Paulo, os grupos anti-vacina se sentiram alimentados e estimulados, e as suas mensagens na Internet ganharam crescimento exponencial (mais de 533 mil visualizações e 80 mil compartilhamentos). Isso é preocupante quando se sabe que a imunidade coletiva só pode ser atingida quando uma parcela significativa da população é imunizada.
Muito além dessas motivações e proteções imuno-biológicas, paternais e fraternais, a vacinação em massa, mesmo sem ser obrigatória, provoca um surto de cidadania. Coloca em ação uma dinâmica social de pertencimento a um grupo, de respeito ao próximo e de proteção individual e coletiva. “Quando tomo vacina, protejo a mim e ao outro”. Os dias nacionais de vacinação, iniciados pelo Ministério da Saúde em 1980 com a campanha contra a pólio e a criação do Zé Gotinha, são símbolos dessas práticas.
O ódio e o medo são dois dos eixos em que se organiza a psique dos paranoicos e psicopatas. O medo da eleição em si supera o medo por qualquer candidato nominalmente identificado. Não importa quem é o candidato concorrente, o medo é da eleição em si, o ódio é ao processo eleitoral. O conhecimento e a organização popular são as ameaças. O contrário do medo não é a coragem, mas sim o acreditar. E Bolsonaro e seu grupo só acreditam neles próprios, nos que pensam e creem como eles. Não acreditam no povo e nas suas defesas. E, por conseguinte, muito menos nas vacinas.
Corroborando tudo isso, no dia 9 de novembro do ano da graça (ou da desgraça) de 2020, Bolsonaro solta a mais mesquinha declaração que, dentre tantas, já conseguiu publicar: “Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Dória queria obrigar a todos os paulistanos tomá-la. O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”.
Afora a confusa construção gramatical, fica evidenciada a mentira, a completa ausência de empatia pelo infortúnio de uma pessoa, a comemoração de uma morte, a jactância pela “vitoria” da morte e a transição da individualidade para a entidade (“Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”), o que aponta para a assunção da divindade e para a exclusão da realidade. E deuses, de fato, não precisam ser imunizados…
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
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