Observatório Psicanalítico 49/2018
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
Herança escravagista: uma síntese
Cristiane Rangel, Eloá Bittencourt, Elisa Alvarenga, Wania Cidade (SBPRJ)
No dia 14 de maio de 1888, o Jornal do Comércio estampava a manchete: “ASSINADA A LEI ÁUREA, o Brasil está livre do trabalho escravo. Na tarde de ontem, a Princesa Isabel sancionou a lei que pôs fim a mais de 300 anos de escravidão (na realidade, quase 400 anos). Conforme o Senador Sousa Dantas, havia no país 600 mil escravos. Levantamento do Império mostra que no ano passado, eram mais de 700 mil. (…)”.
A violência está presente na fundação do Brasil: o tráfico, a tortura, o extermínio, a cisão social e o descaso com a nossa gente estão presentes desde os primórdios.
É preciso pensar em nossa origem para compreendermos o que somos, e onde começa toda a violência que ora vivenciamos, em nossa sociedade.
Apesar da forte influência e de sermos constituídos a partir dos povos indígenas, africanos e europeus, tornando-nos multiétnicos, e da população brasileira ser composta por, aproximadamente, 52% de afrodescendentes, ainda assim o continente africano é pouco conhecido por nós, bem como os efeitos da história, na atualidade. Tenta-se ignorar as interferências que estes povos tiveram na construção do Brasil, privilegiando-se, somente, as influições europeias. No entanto, muito antes da Europa, a África já tinha grandes impérios e civilizações, e os povos que aqui chegaram para ser escravizados trouxeram conhecimentos de diversos campos.
Após quase 400 anos de escravidão e abandono à própria sorte, aqueles que aqui restaram desenvolveram dispositivos de sobrevivência para lidar com a precariedade, em áreas essenciais à vida, como: direito a um lugar para viver, trabalho que lhes rendesse algum sustento e a mínima condição de vida. A força de trabalho do negro passou a não valer nada, o que os afastou, cada vez mais, dos espaços urbanos. Não obstante decorridos 130 anos desde o fim da escravidão, este panorama mudou pouco, e as populações descendentes de índios e africanos continuam estigmatizadas, realizando trabalhos de pouca remuneração e sem reconhecimento social. As práticas de tortura e crueldade, perpetradas desde a chegada dos colonizadores, deixaram rastros observáveis na atual organização social. Ainda hoje, matam-se jovens negros como se fossem animais, o feminicídio aumenta assustadoramente, e as populações indígenas e quilombolas sofrem intimidações políticas em relação aos poucos direitos conquistados, vivendo atemorizadas pelas constantes ameaças às suas terras.
A herança escravagista está enterrada em nosso psiquismo, no solo de ruas pavimentadas dos portos negreiros da Bahia, de Pernambuco, Maranhão, Belém, Rio de Janeiro e outros, onde chegavam os milhares de africanos das mais variadas etnias. Junto com os resquícios da história, pavimentamos também o nosso psiquismo, para evitar, sem sucesso, o assombro dos fantasmas: escravos e feitores, vítimas e algozes que, ao mesmo tempo, fundam a subjetividade individual e social do brasileiro. Na atemporalidade do inconsciente, circulam sujeitos herdeiros da escravidão, e por mais que recalquemos ou recusemos, está inscrito na cultura. No momento em que o sujeito rejeita esta herança, sonha com a liberdade impossível e convive com a subserviência imposta pelo silenciamento de sua origem, acorrentado, a repetir, sem compreender, o ponto que o ancora e o assujeita, seja pelo medo de perder o amor à supremacia branca, ligado ao ideal de superioridade, de completude – racista em sua raiz – seja pelo medo da diferença, da castração, da singularidade, impede qualquer alteridade da existência de um outro diferente de mim. Assim, estamos fadados à pobreza simbólica, à quebra dos laços sociais, ao adoecimento e à violência.
O racismo à brasileira, implacável e cruel, atua de forma devastadora, ao impor ao sujeito negro o alijamento de sua subjetividade e dúvidas quanto à realidade do que viu, ouviu e viveu.
S. Ferenczi postula que o trauma se dá em dois tempos: o da agressão e o do desmentido. Neste segundo tempo, do desmentido, o trauma é efetivado, e diante do sentimento manifestado pelo negro, de ter sido aviltado, a reação do seu entorno é desmentir: “mas isso não aconteceu desta maneira”; “deixe isso pra lá, não vamos falar sobre isso”; “não é racismo”; “fulano é um complexado”. A dor desses traumas em carne viva grita, silencia e chora. O racismo precisa ser reconhecido como força da realidade.
Observamos, nas redes sociais e de comunicação, como esta situação se reproduz, pois endossam e reeditam as fantasias que habitam o imaginário coletivo, ao representarem os negros de maneira caricatural e estereotipada, dificilmente com capacidade criativa e intelectual diversificada, com capacidade de liderança e lugar de destaque. A força e o poder midiáticos poderiam ser canalizados para um trabalho a serviço da conscientização, preocupado com a inserção na programação de um repertório que, realmente, representasse o cenário brasileiro, o que seria um grande serviço prestado à população. Entretanto, reconhecer este estado de coisas é estar em posição radical de receptividade e com disposição para abrir mão da posição de privilégios.
Alguém pode se contrapor a estas ideias, dizendo: “mas temos visto tantos negros bem colocados na TV e na vida”. É verdade, mas ainda é pouco, está longe de ser uma marca que represente os 52% que somos.
Como dizia James Baldwin: …estamos 400 anos atrasados.
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