Observatório Psicanalítico – 123/2019
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo
Grada Kilomba: imagens, palavras e símbolos que mudam de lugar
Ludmila Frateschi (SBPSP)
Grada Kilomba é psicóloga, psicanalista, doutora em filosofia, mas se define como teórica, autora e artista multidisciplinar. Seu livro, “Memórias da Plantação – episódios de racismo cotidiano”, foi publicado no Brasil este ano pela Cobogó e foi o título mais vendido na última edição da Feira Literária de Paraty (FLIP). Sua mostra na Pinacoteca de São Paulo, “Desobediências Poéticas”, que termina amanhã (30), é sucesso de público e crítica.
A presença de Kilomba na FLIP teve um efeito estético tão grande em mim que tive dificuldade de entender o que dizia – tive que ler seu livro. Sua fala é baixa e firme e ela usa as mãos de modo que parece dançar ou esculpir ao vivo. Assim ela explica, por exemplo, como a estrutura acadêmica do conhecimento remonta um falo, sendo a base uma educação tradicional em boas escolas, e a ela sendo acrescentadas falanges, uma a uma, até a livre docência. Posiciona-se fora dessa lógica: combina arte, pesquisa, ciências, conhecimento acadêmico, pessoal e tradicional, de maneira a fazer tudo conversar, de igual para igual.
Bagunça tudo, inclusive a Pinacoteca. Não é comum haver performances e vídeo-performances naquele espaço, nem tantos negros circulando por lá. Em um dado momento, numa das salas, eram maioria. São negros também os performistas. Brancos como eu ficam então propositalmente colocados numa posição de escuta muito específica, estranha, no sentido do unheimlich mesmo, obrigados a experimentar uma espécie de estrangeirismo onde costumamos nos sentir em casa.
Table of gods é uma escultura feita de terra, na qual vemos misturados (e soterrados) os produtos coloniais brasileiros mais expressivos: cacau, açúcar, café, feitos com mão de obra escravizada e – a obra dá a entender – também soterrada pela violência. The Dictionary, traz projeções dos verbetes negação, culpa, vergonha, reconhecimento e reparação, conceitos apresentados a partir de bases psicanalíticas.
Kilomba oferece ao público uma aula sobre como se dá, do ponto de vista psíquico, a tomada de consciência da violência que exercemos cotidianamente e o que é possível fazer com ela. Com isso, convida à mobilidade. Ela oferece saída para o opressor, uma saída que dá trabalho.
Illusions I reconta a história de Eco e Narciso e Illusions II, a tragédia de Sófocles, Édipo Rei. Histórias centrais para nosso campo. Ambas possuem o mesmo formato: dois vídeos. Um maior, centralizado, em que a performance é realizada, e outro em que a artista mesma faz o papel de um narrador da tradição africana – os griots, que conta a performance e pensa sobre ela ao mesmo tempo. A estratégia dialoga com um clamor crescente nos movimentos decolonialistas para que se narrem de novo as histórias da humanidade, marcando o que não foi contado nas histórias oficiais. O griot lembra o que poderia ser um coro grego, mas é uma figura negra. Ter um narrador que está fora e dentro da performance provoca a percepção da obra em dois tempos: o de ver e o de refletir sobre ela.
Illusions I defende que “Não podemos falar de Narciso sem falar de Eco”. Sentimos na pele que só é possível apaixonar-se por si mesmo quando ninguém faz frente ou oposição ao amor narcísico, quando o outro está destinado a apenas aplaudir e repetir o que Narciso diz. Uma mulher se submete a repetir o discurso de um homem apaixonado por si mesmo. Não se ouve o que está em volta. Kilomba dá então um salto: “Um profundo narcisismo parece reduzir o mundo à imagem refletida da branquitude”, na qual os negros não se reconhecem, mas não importa o quanto gritem, não são ouvidos. “Tudo já foi dito. Nós apenas tendemos a esquecer”.
Illusions II acrescenta dimensões à história sobre o assassinato do pai e o amor do filho pela mãe: é o pai, um tirano genocida (pai da horda?), que, ameaçado em seu poder sobre a terra e sobre a mulher, manda matar o filho. Édipo não luta contra seu pai, defende-se dele. Luta, sim, contra aquilo que atinge seu povo, uma morte em massa infinita e incompreensível. Kilomba reforça que o Complexo de Édipo funda a cultura e a cultura em cada um de nós. E se o genocídio, esse destino que vence Édipo, for lido como o genocídio do povo negro? A violência dele, que reage à tirania, pode ser igualada à violência do tirano? Ou, indo mais longe: como faremos para refundar um laço social forte, se aquele que conseguimos até agora se faz às custas do genocídio de outrem, sempre? “Tudo no racismo é irracional e não há nada que eu deseje mais do que me libertar dessa irracionalidade”.
Kilomba provoca a psicanálise com a psicanálise, operando deslocamentos: são imagens, palavras e símbolos que mudam de lugar. Chama à conversa sobre o racismo e o decolonialismo, temas contemporâneos que merecem atenção do nosso campo, porque desafiam e transformam o psiquismo.
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