Observatório Psicanalítico – 148/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo
Feminicídio e cultura*
Daniela Yglesias de Castro Prieto (SPBsb)
Freud, ao longo da sua obra, associa o masculino e o feminino com as posições ativa e passiva, presentes nas subjetividades quer seja do homem ou da mulher. A flexibilidade para alternar entre essas posições favorece a integração destes aspectos no sujeito e torna mais provável o estabelecimento de boas relações.
Vemos, na nossa cultura, a valorização do ativo, aquele que assume o lugar de potência, que comanda e que age. O passivo, em sua possibilidade de acolhimento, capacidade de espera e de processamento é, em geral, pouco valorizado.
O engajamento das mulheres no mundo do trabalho não garantiu a elas uma posição de igualdade nas relações amorosas e sexuais, em especial, nos relacionamentos heteroafetivos. A violência física contra mulheres e o assassinato delas perpetrado por seus parceiros aparecem como a ponta do iceberg de uma violência que se mantém a maior parte do tempo invisível para os outros. Aqueles que não fazem parte da relação abusiva quase não percebem a gravidade do que se passa.
A violência física contra as mulheres geralmente aparece quando a violência simbólica falhou em manter o controle, a submissão desejada pelo homem, conforme Hirigoyen, em “A violência no casal. Da coação psicológica à agressão física”, 2006.
Essa busca da submissão faz pensar em um excesso do ativo, em uma busca do controle sobre o outro, que é percebido como um objeto e não como um sujeito de desejos. Trata-se de uma perversão da agressividade e uma tentativa de negação do outro como sujeito desejante. Negação de seu lugar como sujeito separado e portador de desejos. A transformação em objeto caracteriza sua absoluta negação, o que pode inclusive se dar pelo assassinato.
Uma questão que se coloca é no porquê as mulheres submetidas à violência têm dificuldade de sair dessa posição de passividade extrema. A questão da dependência financeira está presente em muitos casos, mas não esgota o problema. Ressalto o “dispositivo amoroso”, conforme posposto por Zanello em “Saúde mental, gênero e dispositivos. Cultura e processos de subjetivação”, 2017, em que ter sido escolhida e ser objeto de investimento amoroso tem sobre a mulher, muitas vezes, um papel identitário. Nesse sentido, envolve a percepção de si como objeto de valor. Esta pode se tornar uma armadilha em que mulheres se mantém em relações violentas porque não estar com um homem é percebido como algo insuportável para sua autoimagem. Seria ocupar um lugar desqualificado e esvaziado. Muitas se mantém nessas relações violentas, contém a própria agressividade e deslocam-na para si mesmas e percebem a manutenção da relação como forma de refúgio narcísico. Algumas delas morrem nesse jogo desesperado, enquanto não percebem a iminência da morte.
Em meio a uma cultura marcada pela misoginia, o desmantelamento das políticas e dos serviços públicos de apoio às mulheres vítimas de violência por seus parceiros levou ao aumento de feminicídios no Brasil nos últimos anos.
*Trabalho apresentado no Congresso da IPA, Londres, em julho de 2019, na mesa sobre Gender War.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
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