Estranhos analistas

Observatório Psicanalítico 08/2017

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

 

Estranhos analistas

 Rossana Nicoliello Pinho

 

A escrita: 
Freud, ainda às voltas com negociações de sua saída de Viena, escreve ao filho Ernest: 
“Duas perspectivas me mantém em movimento nesses tempos sombrios: juntar-me novamente a todos vocês e morrer em liberdade. ”
Freud reconhecia-se refugiado pois navegara pelas ondas sombrias da morte anunciada, afogara-se em tristeza, desatara laços, desancorando-se de pessoas, objetos e projetos.
Ainda que protegido e referendado, as perdas eram desarranjos sem a certeza de acomodação psíquica, pois nunca se sabe o caminho que tomarão os nossos registros quando da ruptura.
Ironicamente, via-se nas mãos do nazista Anton Sauerwald, em uma estranha relação de desconfiança e necessidade. Dependia desse homem, a sua travessia.
A escrita de Freud, algo que o faz vivo até hoje, encantou Sauerwald. O nazista, num misto de identificação e reconhecimento, certamente envolto em mantos transferenciais, garantiu a liberdade da família Freud.
A escuta e o Setting: 
“E o espírito anseia por poder libertar-se de todo e qualquer disfarce, a fim de poder revelar-se de coração aberto ao outro a quem confia, com quem quer firmar uma livre e leal aliança. ( …). Quase não há sensação que cause maior felicidade do que poder significar algo para os outros. (…). Afinal, o que me parece ser mais importante na vida são as relações humanas; nisso, nem o moderno homem de produção pode mudar alguma coisa, nem tampouco os semideuses ou os tresloucados, os quais nada sabem das relações. ” ( Dietrich Bonhoeffer – Resistência e Submissão- 1943)
Dietrich era teólogo, luterano, membro da resistência alemã antinazista, preso e morto durante a Segunda Guerra Mundial.
Escrevia cartas como testemunho vivo da subjetividade, buscando nas entrelinhas o caminho de entendimento e libertação.
As cartas comuns eram enviadas ao Diretor da Prisão, na maioria censuradas. As cartas ocultas, essas de linhagem semelhante aos sonhos, eram cuidadosamente levadas dentro das botas do carcereiro, depois enterradas, esperando pelo momento da revelação.
Dietrich transformou em prosa a dor que se manifestava no silêncio da reclusão. O carcereiro, esse estranho “analista”, facilitou o caminho da reorganização psíquica, criando um vínculo de reconhecimento e sobrevivência, essa estranha relação em Setting improvisado, em mesclas de “ Resistência e Submissão”, nome dado ao livro póstumo de Dietrich.

Analistas migrantes:

A Psicanálise rompe as muralhas do tradicional Setting Analítico e decide, corajosamente, ainda que permeada pelo desconhecido, ir ao encontro de Refugiados e Imigrantes, tornando-se um estrangeiro em terra de outrem. Mas quem somos quando longe de nossa “Ilha Analítica”? Seria esse ato um desbravamento de novas terras ou uma experiência profunda de readaptação e redescoberta de uma identidade transformada?
Talvez sejamos Bandeirantes nas novas fronteiras, que embora munidos de boa intenção e da consciência político – social, nos definimos como o migrante: ainda não processamos o efeito de sair da cômoda poltrona que nos adjetiva, pareados na experiência com o desconhecido, permeados pelo medo e pelo olhar do outro que ainda não nos reconhece.
Não pode ser romântica a nossa migração, tampouco um ato heroico, pois corremos o risco da colonização invasiva das mentes e da negação dos costumes.
A situação é clara: somos analistas estranhos aos estrangeiros e é urgente entender que a oferta do vínculo tem também a tonalidade do perigo. Eles são sujeitos da incerteza, pois ainda se encontram abraçados pela morte que volta e meia se anuncia real e simbólica e, desvinculados das certezas identificatórias, perambulam por definições trêmulas de si próprios. São alvo do “ Pânico moral “, expressão usada por Bauman, essa explosão de medo coletivo quando do enfrentamento do diferente, por isso vivem entre a ameaça da exclusão e do refugiamento psíquico. 
Seremos então, eles e nós, escritores de uma nova história.
Nosso trabalho é abrir as portas da Subjetividade.
Nossa missão é a escuta do canto triste que ecoa do Refúgio, é dar som e destino às cartas de língua estrangeira, é navegar pelo desconhecido sem medo de perder de vista o destino e a liberdade.
Nossa ousadia: fazer existir a Psicanálise para além dos parâmetros rígidos da ortodoxia e entender que vínculo e confiança se fazem também a “ Céu aberto ”.

 

Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores.

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