Entre o anedotário e o obituário

Observatório Psicanalítico – 195/2020

Imagem: manifao.org

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.

Entre o anedotário e o obituário 

Ludmila Frateschi (SBPSP)

A paciente Z conta da sensação, recorrente, de que ela assusta aos homens. Cita um primeiro, com quem, depois de muito tempo de conversa, decidiu furar a quarentena: “O cara, lá para umas tantas, desandou a tossir. ‘É COVID’, perguntei, ansiosa. ‘Não, é nervoso'”. Rimos juntas. Lembra, então, de um segundo: supostamente também por estar assustado, não teria aceitado dançar com ela numa festa, pouco antes de a pandemia chegar. “Estava todo mundo dançando, eu o chamei e ele disse que não, que havia jurado não dançar mais danças de par. Bem feito, veio a pandemia e ele nunca mais dançou mesmo”. Mais risos.

Uma amiga conta que imaginou a quarentena como uma ótima oportunidade: “já que não vou poder piranhar, terei que me haver com meus problemas”. Ledo engano – apaixonou-se por um antigo conhecido. Desiludiu-se. Sofrendo, me diz: “A dor do mundo a gente compartilha com outras pessoas. A dor de amor é só da gente mesmo”. Cantarolo Eric Clapton, no automático: “old love, leave me alone. Old love, just go on home”. A que ela, prontamente, me responde: “Home? Melhor que pudéssemos ir todos pra roda mesmo, inclusive o velho amor. É certo afogar as mágoas no samba! O rock pode ser catártico. Mas afogar… Não afoga é nada!”. Brindamos, então, ao samba. Por zoom.

Encontro um casal de amigos num jardim, de máscara e a dois metros de distância. Contam que se aventuraram indo ao salão de beleza lá por maio, quando os salões ainda estavam supostamente fechados. Para irem, ligaram diretamente para a cabeleireira, marcaram horário e combinaram os procedimentos de segurança, que incluíam a entrada pela porta dos fundos. Assim, acharam que só haveria eles no ambiente. Ao chegar, “tudo parecia um bar clandestino durante a lei seca”. Evoco Dennis Lehane em Os filhos da Noite e imagino a cena – ambiente escuro, com janelas fechadas e luz branca, olhares furtivos e desconfiados aos recém chegados. Já as fumaças dos cigarros foram substituídas pelas dos secadores… Enquanto eu limpo a garrafa de suco de uva com álcool gel antes de me servir, lamentamos a concessão que fizeram, bem como o conservadorismo a que fomos reduzidos.  

Vou constituindo um anedotário de pandemia, quase anacrônico porque estranhamente simultâneo às imagens das praias e bares lotados por todo o país. 

A simultaneidade tem uma explicação: frente à ausência de qualquer política de Estado e à sensação de que nenhuma ação individual tem qualquer efeito significativo, parece haver uma aceitação tácita de que o combinado agora é que cada um faz o que quiser. 

Há quem se renda de vez. Imagino que não todos da mesma forma: alguns, numa espécie de “se não pode vencê-lo, junte-se a ele”, vivem como estivéssemos no juízo final e a pandemia só fosse punir os maus ou os mais fracos, apostando em sua própria bondade e força.  Outros, numa espécie de “carpe diem” exacerbado, deixam de ver sentido em tudo o que não é concreto e imediato e se lançam a obter prazer máximo, sem pensar muito nos riscos e custos.

Há também a parcela de pessoas (talvez a mais heroica) que segue convicta num isolamento radical, justificado pela autoproteção, pela proteção dos entes queridos e também como protesto à eugenia que esse governo nos impõe. Gritam pela volta do confinamento como política, mas, embora amparados pela lógica científica e por ameaças de novo crescimento do vírus na Europa, têm sua ação enfraquecida na falta de medidas que as potencializem, tornam-se formiguinhas frágeis tratoradas pela abertura. E, assim, são desacreditadas como utopistas loucas, questionadas em seu masoquismo.

Tento entender. Por associação, recordo duas cenas. A primeira: uma vez em que, andando de táxi no Rio, fui surpreendida por um barulho estrondoso no teto do carro. O motorista parou, desceu e não me deixou descer. Entrou de volta com um projétil na mão: bala perdida. Fiquei bastante perturbada, mas ele, não. Nem as pessoas a quem eu estava indo visitar. Em pouco tempo, almoçávamos tranquilamente. A segunda: em uma reunião de trabalho, ainda bem no início da pandemia, colegas contavam da experiência de encontrar perto de suas casas ruas ainda cheias, com pessoas tentando se divertir. Aflitas, tentavam convencer os transeuntes a cuidarem-se, mas eram vencidas pelo argumento de que a morte não assustava e de que a vida já não era vida se não fosse possível alguma catarse. 

Não basta sobreviver, é preciso suportar a vida. E entre a rendição e o heroísmo deve estar a maioria de nós, tentando achar os meios. 

Uma outra amiga, numa conversa telefônica, me diz: “Na verdade, fico espantada com aqueles que se cristalizaram apavorados. Eles devem ter tido uma vida muito bonitinha ou então nunca se deram conta da violência sob a qual nos encontramos neste momento. O pânico do trauma é para aqueles que dele sempre estiveram protegidos”. 

Não sei se é sempre assim, mas faz algum sentido. De qualquer forma, o pânico de fato aprisiona, é grande demais, e talvez valha à pena nomear os medos. Não estamos todos com medo? De que as mortes não cessem, de que o país siga nesse caminho autodestrutivo, de que o mundo acabe? De uma pandemia depois da outra, de uma guerra depois da outra, de um genocídio depois do outro, de um desastre ambiental depois do outro? De ficarmos trancafiados vendo a vida passar, de morrermos sozinhos, de COVID, de câncer, infarto ou derrame? De perder a perspectiva? 

Eliane Brum, num lindo ensaio publicado no último dia três, a propósito do sete de setembro, no El País, faz uma pergunta que cabe bem aqui: “como pode barrar seu próprio genocídio um povo que se acostumou a morrer?” Convida-nos a resistir. 

Hoje é dia da Independência e ele deveria remeter à insubmissão de um povo (um coletivo) contra seus opressores / colonizadores, ainda que nossa história seja tão complexa que nem isso seja mesmo exatamente verdade.  A questão é que, frente ao horror político que vivemos, o dia parece tentar transformar a palavra independência em coisas como “salve-se você mesmo”, “não precise de ninguém”, “Viva como se não houvesse mais ninguém”. 

O paciente X desliza de uma reclamação sobre o descaso de colegas com o trabalho para outra sobre o descaso do caixa do supermercado com a falta de álcool gel disponível ao lado da maquininha de cartão. Depois, emenda: “O Presidente declarou que a vacina não será obrigatória”. Silenciamos. 

Depois de escrever esse texto, talvez eu dissesse a X que ele parecia com medo de que a lógica do descaso, do “cada um por si” o contaminasse – há vacina para isso? Não disse porque, sem ainda me dar conta, temia (temo?) o mesmo. 

Não sei se há como se tornar imune ao “cada um por si” genocida de Bolsonaro. Mas “há de haver mais compaixão” – e pulsão, amor, palavra, humor e criatividade suficientes para que nos rebelemos ao costume de morrer, como coletivo e não como indivíduos isolados, tornando-nos independentes dessa sina horrorosa. 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

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Tags: Covid-19 | Pulsão de vida | Vacina
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