Observatório Psicanalítico – 84/2019
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
Em tempos difíceis fique com a arte
Silvana Rea (SBPSP)
A recente 33a Bienal Internacional de São Paulo adotou o tema “Afinidades Afetivas”, uma escolha do curador espanhol Gabriel Pérez-Barreiro. Neste jogo de palavras mescla o título do livro de Goethe Afinidades Eletivas (1809), com o texto seminal do crítico de arte Mario Pedrosa, Da Natureza Afetiva da Forma (1949).
De Goethe, o que interessa a Gabriel é o seu questionamento das afinidades eletivas da vida emocional, regidas por forças que vão além do racional.
Quanto à Mario Pedrosa, sua contribuição está na defesa da percepção e da apreensão dos objetos pelos sentidos como fundamental ao conhecimento. O mundo, diz ele, se oferece à percepção na experiência imediata. E esta é a origem, que somada à necessidade afetiva e perceptiva de se organizar a realidade, leva o homem a construir a ciência, a religião e a arte.
Para contemplar as “afinidades afetivas”, foram convidados sete artistas que assumiram a posição de curador e montaram livremente sete exposições, a partir de suas afinidades eletivas, tendo como única condição a de também incluir suas próprias obras.
Com esta proposta, Gabriel cria um diálogo entre os artistas envolvidos e propõe que o espectador compartilhe desta relação com sua experiência da obra e, consequentemente, com a intenção do artista. Condição necessária a qualquer visitação à arte, mas que muitas vezes fica prejudicada por uma compreensão exterior pré-determinada. Aqui, sai o discurso sobre a obra e entra a experiência direta, estimulando o espectador a criar suas próprias afinidades eletivas.
A estratégia curatorial adotada coloca em cheque a produção de conhecimento sobre arte, mas vai além. Ao descentralizar o papel do curador, Gabriel questiona de maneira mais ampla os saberes enquanto estruturas de poder. Uma denúncia do conhecimento autoritário que inibe a reflexão, que exige uma visão única sobre o mundo. Uma reação às verdades prontas, hipermediadas e ao excesso de informação, que associado à sua fragmentação, resulta em pseudoinformação.
Uma estratégia arriscada, pois pode sustentar o que pretende denunciar. Corre o risco de estimular a máxima do descompromisso epistemológico contemporâneo do se “eu acho” ou “eu sinto”, então vale como verdade – e para todos. O que incorreria em uma repetição sintomática da estrutura autoritária sem reflexão, sem contextualização histórica, sem acesso ao conhecimento já produzido.
Mas é fato que ela mira no ponto fundamental da arte: a relação do espectador com a obra vem de um impacto perceptivo que gera perguntas. A experiência de abertura do espectador, ainda que mediada por toda a carga cultural que o sustenta, provoca um olhar que questiona, um olhar que não sabe de antemão, mas que vai em busca de conhecer. Um olhar que se aproxima da atitude psicanalítica.
Isto nos encaminha à noção de “estranho”, tema do XXVII Congresso Brasileiro. Refere ao texto fronteiriço entre Estética e Psicanálise, onde Freud se afasta de sua predileção pelo Romantismo com sua teoria do belo. Pois enquanto prepara a revisão da teoria das pulsões, ele inaugura um pensamento sobre a perspectiva artística sem qualquer compromisso com a harmonia, o belo, o bom – ele introduz a noção de inquietação e de repulsa.
“O estranho” joga o nosso olhar na contemporaneidade, oferecendo categorias para se pensar as propostas dos artistas contemporâneos, em cheque desde A Fonte de Marcel Duchamp.
A arte contemporânea convoca o espectador a um lugar diferente daquele da fruição; ela convoca o espectador à participação. E ela não apazigua nem elude a morte. Pelo contrário, evidencia à nossa percepção algo que desejamos manter oculto. Ela provoca inquietante estranheza, traz à vista a fissura de nosso território estrangeiro; um lugar onde ver é se perder em uma experiência de margens pouco nítidas que provoca um abalo no conforto identitário. Por isso muitos críticos da arte consideram “O estranho” o trabalho de Freud que contempla o ponto de vista da Estética na contemporaneidade
Pensando nestas questões, organizamos uma atividade pré congresso em Inhotim no dia 18 de junho de 2019. Dividimos a atividade em dois momentos: na parte da manhã, a imersão na experiência singular de cada participante com as obras, sem mediações discursivas. Um momento pessoal para criar suas próprias afinidades eletivas, para se abrir ao impacto perceptivo, para elaborar suas perguntas. E na parte da tarde, vamos conversar com psicanalistas e profissionais da área de arte, concluindo um percurso que não ignora o caminho de construção e ampliação de conhecimento.
Vivemos tempos difíceis, de risco de perdermos o muito que conquistamos. Neste contexto, a arte pode ser uma ameaça, pois promove a reflexão e a abertura para o novo. Particularmente a arte contemporânea, que se apresenta como alteridade radical, questionando o espectador, provocando mudanças.
Por isso, encerro com as palavras revolucionárias de Mario Pedrosa: “Em tempos de crise, fique do lado do artista”. Ou da arte.
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