Observatório Psicanalítico – 168/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
“Em nome dos pais, das filhas e dos espíritos sãos” (Velhice, abandono e esperança)
Camila Bustamante Pires Leal e Carlos Pires Leal (SBPRJ)
Filha: Oi pai, como vão as coisas por aí? Estão se cuidando? Com essa pandemia, temo que pessoas com mais idade, como você e a mamãe, se sintam ainda mais sós e com medo de adoecer, de morrer…
Pai: Compreendo sua preocupação, minha filha. Estamos nos cuidando sim. Aliás, como sempre fizemos. Cuidamos com zelo da nossa vida independente da pandemia. É que ela tem sido boa de ser vivida… É pouco provável que nos sintamos “mais sós” com toda essa confusão, porque já não nos sentíamos sós. Pelo menos aquela solidão doída e desesperançosa. Medo de ficar doente e morrer, sentimos um pouco. Mas a verdade é que temos muitos interesses, não paramos quietos. Morar entre as montanhas ajuda. Será que é porque elas ocultam o além-do-horizonte?
Filha: E o que pode nos reservar o além-do-horizonte, além-das-montanhas, em tempos de Terra Plana? Quando eu falo sobre a solidão estou me referindo àquela solidão intrínseca e inescapável, que se acirra quando nos sentimos desamparados, sem saída, incompreendidos… O desamparo a que estamos todos submetidos – agora mais escancaradamente já que nossos artifícios costumeiros da constância se embaralharam – parece ser ainda mais aterrador para os velhos.
Pai: Pois é, o medo e o desamparo se tornaram experiências agudas, compartilhadas por 7 bilhões de irmãos-terráqueos. Será que essa sensação de que “estamos juntos nessa” não traz, além de assombro e desalento, esperança? A respeito do desmantelamento dos artifícios do faz-de-conta de sabermos o que encontraremos ao dobrar cada esquina da vida, sinto que a Psicanálise vem em nosso socorro. Entre os ossos do nosso ofício – ossos que o sustentam e desafiam – está a admissão do não-saber, e da utopia esperançosa do vir-a-ser.
Filha: Como é importante compartilhar para termos esperança! Nosso trabalho como psicanalistas é sonhar junto, criar-encontrar esse “não se sabe o quê” que fica para além do horizonte sabido. Construir esse porvir esperançoso tem sido difícil num mundo onde o isolamento necessário não se dá apenas para proteger, mas para apartar o velho. O isolamento do velho está na capa dos jornais de hoje, mas não é novidade. O novo é que as circunstâncias atuais envelhecem um pouco a todos: todos convivemos com a falta de perspectiva, o isolamento, a vulnerabilidade, o medo do fim, de adoecer…
Pai: É verdade, filha. A pandemia criou uma justificativa cientificamente validada para o nosso isolamento. Fica parecendo que se afastam dos velhos para protegê-los e não para proteger-se da velhice. Para além da escassez dos serviços de saúde, constatamos que os recursos e disposições mentais para lidar com os idosos e o envelhecimento têm sido cronicamente exíguos, numa civilização que tem horror a finitude e repugnância pela erosão da imagem de quem envelhece.
Filha: O tempo passa para todos… atiçando-nos a tomar posse da nossa própria existência, responsabilizando-nos pela construção e reconstrução da nossa história. Tarefa difícil, porém necessária para elaboração da finitude, é encontrar nosso lugar no mundo. Danielle Quinodoz, aquela psicanalista sobre quem falo às vezes, escreveu a respeito das dificuldades de ceder nosso lugar antes de tê-lo encontrado, deixar a vida antes de sentir que realmente viveu. Tão importante o trabalho da análise neste sentido! Inclusive, e especialmente, quando o fim está mais próximo. Sabe que um dia desses uma paciente idosa criou, num lapso de linguagem, a alcunha “Cronos vírus” para este “vírus que mata os velhos.” Um vírus que mata o que o tempo tardou em matar? Este pode ser mais um equívoco do nosso (des)governo que reforça e potencializa a “velhofobia” de parte da população com discursos e atos cheios de preconceitos e violência.
Pai: “Cronos vírus”: os pacientes, velhos ou novos, fonte do nosso saber, sempre!
Filha: Sim! Sabe, pai, a notícia do suicídio do ator Flavio Migliaccio caiu em mim como a flor murcha ao final do verão, tal qual deve ter acontecido com o jovem poeta naquele passeio pelas Dolomitas na companhia de Freud – lembrando que o tempo passa levando o viço, a beleza e a esperança. O desconsolo do ator com o caos que é a velhice neste país – em suas palavras – foi tamanho que ele elegeu esta como única e irreversível saída para sua dor. A possibilidade de valorizar a transitoriedade da vida, com todas as intempéries da velhice, parece ter se perdido junto com a esperança.
Pai: O vazio e o desalento têm marcado de forma tão preocupante os tempos atuais. Pelo que se luta? Com o que sonhamos? A cada despertar, o que nos faz sair da cama para reencontrar a vida no claro do dia? Será que a experiência da pandemia nos estimulará a rever a vida, buscar novos sentidos para a civilização? Apesar de, com o seu ofício, ter nos ajudado a sonhar e a acreditar no homem como um projeto viável, Migliaccio não pode usar as saídas criativas que com maestria cultivou em sua arte. O último fio de esperança rompe-se na sequência. Flávio não tolerou as limitações do envelhecer. O “Cronos vírus” contagiou e aniquilou o território de Eros…
Filha: Fico pensando: sem um farol talvez seja impossível atravessar esta tormenta e chegar em terra firme. Diariamente tentamos criar uma bússola… Quem seremos depois de tudo isso?
Pai: Filha, talvez não exista terra firme na aventura da existência. Todos os dias são dias de navegação. O flutuador da embarcação, que não a deixa naufragar, é a presença amorosa dos companheiros de viagem – além de uma confiante expectativa de que chegaremos sãos e salvos a uma terra fecunda (prometida?). Fico contente, filha, de estarmos aqui, juntos, procurando compreender e dar sentido a este momento tão incerto e assustador. Você fala em criar uma bússola para essa travessia. Não tem sido a Psicanálise – mais uma afinidade entre nós – nossa melhor companheira de viagem? Fique bem, proteja-se, já-já nos abraçaremos novamente.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
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