Observatório Psicanalítico – OP 210/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
El pibe de oro se fué
Julio Hirschhorn Gheller (SBPSP)
A morte de Maradona teve repercussão planetária. Depoimentos consternados encheram as páginas da internet, inclusive no Brasil, apesar e por conta da antiga rivalidade com a Argentina. Lendo algumas postagens, fui me recordando de episódios de sua polêmica trajetória.
Diego Armando Maradona nasceu em um subúrbio humilde de Buenos Aires. Com seu mágico pé esquerdo ele estava destinado a “ser gauche na vida”, meio louco e meio desencaixado. Tal como outros meninos pobres, deve ter comido o “pão que o diabo amassou” até que sua competência no futebol lhe descortinasse um futuro melhor.
Na Copa do Mundo de 1978, realizada na Argentina em plena ditadura militar, tudo parecia arranjado para que o país-sede ganhasse o torneio, o que de fato veio a se consumar. Evidentemente, assim como por aqui em 1970, os generais de lá pretendiam tirar proveito dos dividendos políticos da vitória, principalmente por jogarem em casa. Diego estava com apenas 17 anos de idade e já despontava como um craque diferenciado, mas o treinador não o convocou por ser muito jovem, ainda considerado um pibe, isto é, um garoto. A frustração só seria compensada posteriormente.
No início dos anos 80 mudou-se para a Europa, contratado pelo time do Barcelona, da cidade em que – como ele relata em sua autobiografia – começou a fazer uso de drogas, especialmente cocaína. A cocaína possivelmente exacerbou sua tendência à onipotência e ciclotimia, alternando estados hipomaníacos e euforizantes com estados depressivos.
Maradona precisou esperar até 1986 para a sua grande consagração. Dois lances ficaram para a história, ambos no jogo de quartas de final contra a a Inglaterra. O primeiro foi o famoso gol com a mão. A jogada não foi anulada e ele, com sua habitual imodéstia, a classificou como produto da “Mão de Deus”. Minutos depois ele criaria uma verdadeira obra de arte. Partiu de sua intermediária, atravessou o meio do campo e, numa fulminante arrancada, foi driblando sucessivamente cinco adversários até fintar o goleiro e concluir com um verdadeiro gol de placa, que levou a torcida argentina ao delírio. Para muitos é o mais belo gol da história das copas. Além da plasticidade intrínseca, o lance significou a revanche contra a Inglaterra que, quatro anos antes, havia derrotado a Argentina na Guerra das Malvinas. Algo como um retorno do recalcado, que evocava a humilhação da derrota e a dor pela terrível perda de vidas humanas jovens, provocou uma explosão emocional com sabor de vingança. Traduziu-se em choros de alegria triunfante e gritos até então engasgados, que convulsionaram o país de nossos hermanos. O mundo inteiro se assombrava com a performance espetacular de Maradona. Um novo clímax ocorreria após o jogo final contra a Alemanha, ocasião em que a vitória concretizou o tão sonhado bicampeonato, elevando ainda mais o moral do país, que celebrava o esquadrão comandado por nosso herói.
Desde então se tornaram constantes as comparações em relação a Pelé, incentivadas pelo próprio Maradona. Tomado por um narcisismo grandioso, ele enchia o peito e se autoproclamava como o maior de todos os tempos. A bem da verdade, Pelé detinha o mais completo arsenal de qualidades específicas, um conjunto fantástico de técnica, habilidade e atleticismo, muito difícil de ser superado neste esporte. Maradona era baixinho e gordinho, não tinha o “physique du rôle”, contava só com o seu pé esquerdo. Contudo era um artista da bola, capaz de tudo só com este pé. Captava a atmosfera dos jogos decisivos e se transformava em um gigante, o senhor do espetáculo.
Sua carreira foi acidentada. Saindo da Espanha, foi ter anos exitosos em Nápoles, conduzindo uma equipe de menor expressão a dois títulos italianos. Um time pequeno subjugava os grandes, reforçando o mito de Maradona. Por outro lado, a faceta mais sombria e controvertida de sua passagem pela Itália remetia a um possível envolvimento com a Máfia e a uma longa suspensão, em consequência do uso de cocaína.
Paulatinamente, começou a sentir o efeito deletério das drogas e engordou exageradamente. Seu casamento naufragou, teve outras companheiras e amantes, reconheceu cinco filhos, mas existem controvérsias a esse respeito, supondo-se que, contando os não reconhecidos, possam ser nove ou até onze filhos no total.
Passados alguns anos, empenhou-se com o objetivo de estar em forma para a Copa de 1994. Emagreceu bastante e conseguiu jogar, mas caiu no exame de antidoping, que acusou a presença de efedrina. Esta substância da família das anfetaminas, comum em medicações antigripais e remédios de emagrecimento, não produz, propriamente, benefícios significativos em termos de desempenho físico. De todo modo, mesmo que ele a tenha ingerido inadvertidamente, o fato resultou na sua eliminação do torneio. Declarou, entre indignado e comovido, que havia corrido em campo por amor à camisa e não pelo efeito da medicação proibida. O severo golpe com esta punição deflagrou o início da derrocada como jogador. Ainda tentou trabalhar como técnico, chegando até a treinar a seleção de seu país, mas os dias de glória tinham ficado para trás.
Infindáveis brigas e batalhas judiciais com a ex-mulher e as duas filhas mais velhas, sempre por motivo de dinheiro, foram se arrastando e o atormentaram até o fim de seus dias. Este conflito se repetiu com outras de suas parceiras, a quem acusava de serem interesseiras.
Acumulou polêmicas pelo alinhamento com líderes de esquerda no continente. Revelou admiração por Che Guevara e manifestou apreço por Hugo Chavez, Lula e Evo Morales. Considerava Fidel Castro como uma espécie de segundo pai. Fidel o havia recebido em Cuba, oferecendo-lhe tratamento de desintoxicação para o vício em uma clínica local. Em 2014 estava presente no jogo de abertura da Copa do Mundo em São Paulo e criticou veementemente a desrespeitosa vaia com que Dilma Roussef foi hostilizada no Itaquerão.
Há quem questione a consistência de seu posicionamento político. Isto porque ele teve relação de amizade com o presidente Carlos Menem, um neoliberal afinado com os Estados Unidos. Além do mais, chegou a expressar apoio ao ditador nicaraguense Daniel Ortega e ao regime do Irã.
Ao revisar este texto me deparei com a crônica do renomado escritor Julián Fuks, filho de pais argentinos, também dedicada a Maradona. Percebi imediatamente o perigoso atrevimento de minha parte em querer publicar este meu escrito. Em gíria futebolística, eu seria um mero “perna de pau” perto de Julián, um craque reconhecido e premiado. Driblei este sentimento de minusvalia e segui em frente. Pensei em tomar um aspecto que ele assinala em sua crônica como um passe na minha direção, aproveitando para concordar com sua argumentação. Refiro-me à consideração de que o talento político de Diego estava metaforizado no sentido inconformista e subversivo de suas atuações no campo de jogo, independentemente das possíveis contradições e incoerências nas atitudes e falas extracampo. Ali no espaço entre as quatro linhas do gramado, o astro crescia na adversidade e invertia os prognósticos de um saber cristalizado.
Don Diego é um exemplo da tragédia da hybris, da desmedida. Ele atingiu o mais alto dos picos em sua arte, mas teve que pagar um preço considerável, como que castigado pelos excessos. Consciente de ser um fora de série, seu orgulho exagerado beirava a empáfia e arrogância e a busca do prazer se transformou, por vezes, em perseguição irrefreável de um gozo transgressivo. Sofreu por muito tempo com a dependência química, tendo substituído a cocaína pelo álcool nos últimos anos de vida. A falta do eletrizante frisson da disputa e do aplauso dos estádios lotados acelerou o inexorável declínio físico e contribuiu para um quadro de depressão. Com o organismo bastante debilitado, faleceu precocemente, deixando uma narrativa pontilhada de contrastes, oscilando entre os extremos que caracterizam as misérias e as grandezas do ser humano.
Que descanse em paz!
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