Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Sódepois 45
Janeiro/24
Janeiro foi vermelho. O assassinato, em solo brasileiro, da venezuelana Julieta Hernández – mulher migrante, nômade, palhaça e viajante de bicicleta, como se descrevia – não passou despercebido pela equipe de curadoria do OP. Sua morte levantou questões sobre misoginia e segurança da mulher e, embora, esse não tenha sido tema específico de nenhum ensaio no OP deste mês, prestaremos homenagem a ela elegendo para guiar este editorial o mote de Julieta: “minha casa é o movimento”.
A curadoria está em movimento e, se até janeiro foi composta por seis mulheres, em fevereiro dará boas-vindas a duas novas integrantes: Lina Schlachter Castro, da SPFOR e Giuliana Chiapin, da SBPdePA. Em um grupo composto por tantas visões, acreditamos estimular nossa permeabilidade às questões que emergem nos meios de comunicação, atentas às funções que um observatório se propõe. Nos bastidores encaminhamos umas às outras os fatos selecionados que se destacam nas notícias e memes das semanas, dos dias, das horas e, assim, buscamos compor uma unidade pixelada, formada por fragmentos dinâmicos sobrepostos do cotidiano, que acreditamos dar cor e tom aos encaminhamentos das questões que se apresentam a partir dos membros das federadas.
Além dos ensaios que nos chegam espontaneamente, agimos como coletoras, buscando capturar, no sussurrar dos fatos, temas que se mostrem relevantes e, muitas vezes, convidamos colegas a produzir ensaios. Esses convites são feitos com a limitação de que não conhecemos todos os associados da Febrapsi e demais federações da América Latina e, precisamos nos basear em escritos anteriores daqueles que se sobressaem pela afinidade com determinados assuntos. Gostaríamos, então, de reforçar o convite para que mais atores venham para a cena e enviem ensaios sobre questões que se apresentem na cultura e que os mobilizem a escrever.
Observando o conteúdo dos textos publicados e os comentários feitos no grupo de e-mails, é possível constatar que o OP se compõe cada vez mais de subjetividades. Os autores, embora embasados em extensos conhecimentos da teoria psicanalítica, têm se mostrado como corpos, carne que sangra, de sangue vermelho, não azul (como costumam dizer sobre a pretensão dos psicanalistas da IPA). Levando em conta fenômenos transferenciais, gostamos de supor que estas manifestações no OP são atravessadas pela passagem através das mulheres curadoras.
Na obra “A guerra não tem rosto de mulher”, a autora, Svetlana Aleksiévitch, aponta para a peculiaridade do olhar na narração de histórias de guerra feita por mulheres russas que estiveram no front na Segunda Guerra Mundial. Talvez o desejo inconsciente cultivado pela curadoria se aproxime do que Svetlana expressa nesse trecho: “O que estamos procurando? Em geral, o que nos parece mais interessante e próximo não são os grandes feitos e o heroísmo, mas aquilo que é pequeno e humano. Por exemplo, o que eu mais gostaria de saber sobre a vida na Grécia antiga… sobre a história de Esparta… eu gostaria de ler sobre o que as pessoas conversavam em casa. Como partiam para a guerra. Que palavras diziam no último dia e na última noite antes de se separar daqueles que amavam. Como se despediam os guerreiros. Como eram esperados na volta da guerra… não os heróis e os chefes militares, mas as pessoas comuns.” (Aleksiévitch, Svetlana)
O OP, no entanto, tem o rosto da psicanalista e do psicanalista que não é neutro, mas que tem cor, cheiro, gosto e cotidianamente sofre, briga, abraça, chora, beija, grita e assim se mantém em movimento, capaz de acolher o vão, o “entre” que nos separa do outro, de forma que o primeiro ensaio do ano foi “Entre Tânatos e Eros: destruir para construir a cidade”, OP 460/2024, em que Laerte Idal Sznelwar (SBPSP), questiona a espoliação e exploração dos espaços das cidades em função de interesses individuais voltados ao lucro, desconsiderando as necessidades do entorno. O autor lamenta essa destrutividade que suprime o vão, obstruindo a passagem do vento e da luz solar e diz: “a cidade se constrói também e, muito, no entre. O entre significa aquilo que não é parte exclusiva minha, mas que é relacional.” O entre é onde existe movimento.
No próximo ensaio publicado, OP 461/2024, “Oito de Janeiro”, Júlio Hirschhorn Gheller (SBPSP), recorreu a imagens do “Conto de Aia”, obra literária que trata sobre um futuro distópico e antidemocrático, para também refletir sobre o “entre” o que se passou do oito de janeiro de 2023 ao oito de janeiro de 2024, em que serve a palavra impunidade: “cabe lembrar que ainda aguardamos pela elucidação de quem seriam os cabeças e planejadores dos atos antidemocráticos, de quem financiou a vinda dos manifestantes para a ”festa da Selma”, de quem ajudou na manutenção do acampamento em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília, bem como de diversos acampamentos em frente a quartéis de outras cidades, em que indivíduos bradavam pela destituição do presidente eleito”.
E o mês seguiu com “Um (outro) dia de domingo”, OP 462/2024, de Mariano Horenstein, da APC (Associação Psicanalítica de Córdoba), que com o coração pesado diante do resultado das eleições presidenciais na Argentina se revê no espaço de tempo, também de cerca de um ano, entre dois domingos, um onde ele escreveu sobre os ataques à democracia no Brasil e outro, mais recente quando sofre pela situação política da Argentina; constatando que o vão é, na verdade, um abismo: “esse abismo é capaz de engolir jovens que querem tornar o mundo um lugar melhor. E a todos nós também. Pois o abismo fascina e, por meio da fascinação, paralisa. Também são fascinantes as luzes de um carro que se dirige para nós e está prestes a nos atropelar.”
A tristeza, no janeiro vermelho, cavou ainda mais fundo quando Miguel Sayad (SBPRJ), em resposta ao ensaio “Carthago delenda est” (OP 457/2023), da Adriana Augusta (SPFOR), compartilhou seus gemidos e chorou o pranto das “crianças martirizadas e suas mães em Gaza”, no ensaio “Comentários alados, aqueles que voam e semeiam não se sabe onde, nem quando, e se florescerão”, OP 463/2024, contou como, num dos natais mais tristes de sua vida, sentiu que “a tristeza imensa impulsionou este movimento para o espaço vazio” e clamou os psicanalistas a usarem a palavra para condenar os massacres perpetrados por Israel.
Durante o mês de janeiro o mundo acompanhou os pronunciamentos da Corte Internacional de Justiça em Haia, que trata da solicitação feita pela África do Sul por um cessar-fogo imediato em Gaza. A Corte anunciou, no dia 26, um pedido de garantias de que a população palestina tenha seus direitos e serviços respeitados, e um apelo ao Hamas para que os reféns israelenses sejam liberados. No entanto, o cessar-fogo imediato não foi solicitado. As deliberações da Corte de Haia têm caráter político, mas o órgão não tem meios para implementar suas decisões, que poderão ou não ser acatadas.
Nesse mesmo dia 26 o OP publicou o ensaio “A torre, o fracasso”, OP 464/2024, em que Daniel Delouya (SBPSP), utiliza a poesia para retomar o movimento entre nós, reconhecendo a hipocrisia intrínseca à condição humana manifesta na distância entre discurso e ação. Entre lapsos de luz e abismos de desesperança, o autor faz uma confissão dolorosa: “preferia não ser judeu” e diante do inexorável, recorre à literatura para que o vão seja novamente cavado e caibamos todos, junto com ele, no “entre”.
Tantos fatos surgiram e as associações fizeram com que o OP resgatasse, no #tbt do Instagram, as reflexões da Beth Mori (SBPsb) no OP 05/2017 “A higienização da pólis: o desmonte de uma política de saúde”, por ocasião das perseguições sofridas pelo padre Júlio Lancelotti e o ensaio OP134/2019, “O eterno retorno da intolerância brasileira”, de Lina Schlachter Castro (SPFOR), relembrando a morte de Marielle Franco, visto que só recentemente Domingos Brazão, atual conselheiro do Tribunal de Contas de Estado do Rio de Janeiro, foi apontado como mandante do crime que segue sendo investigado.
Entre chegadas e partidas, nos despedimos da querida Camila Reinert (SBPdePA) que trabalhou conosco na confecção e manutenção do OP no Instagram. Camila seguirá se dedicando à OCAL, e faz parte da comissão organizadora do congresso que ocorrerá simultaneamente ao da FEPAL, em outubro deste ano no Rio de Janeiro. Agradecemos a sua valiosa colaboração neste período!
Apesar de todas as questões levantadas, outras tantas ficarão de fora do nosso espaço de janeiro, mas não esquecemos: do buraco causado pela impunidade em Maceió, das leis tão falhas tentando proteger as crianças do cyberbulling, das eleições municipais tão importantes e decisivas que acontecerão esse ano. Não nos esquecemos, sobretudo, da morte que Julieta Hernández, que se reedita diariamente, levando tantas mulheres, no entanto enquanto houver vida, tomemos emprestado o lar de Julieta e, fazendo vento com nossa voz, gritemos: “minha casa é o movimento”.
Um abraço afetuoso,
Equipe de curadoria,
Beth Mori (SPBsb), Ana Valeska Maia (SPFOR), Gabriela Seben (SBPdePA), Gizela Turkiewicz (SBPSP), Helena Cunha Di Ciero (SBPSP) e Vanessa Corrêa (SBPSP)
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Imagem: Julieta Hernandez https://www.instagram.com/p/
Categoria: Editorial
Palavras-chave: Editorial, Observatório Psicanalítico, Julieta Hernández, Movimento, Espaço
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