Editorial – Observatório Psicanalítico – junho/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo
Editorial OP – junho/2020
Em 25 de maio de 2020 morria George Floyd, de bruços por 8 minutos e quarenta e seis segundos entre o asfalto de Minneapolis (EUA) e a extrema violência racista que se ajoelhou, com a mão no bolso, sobre o seu pescoço. O grito que vemos explodir nas manifestações mundo afora dá voz àquele que ficou preso na sua garganta e na de todos que acreditam que reforçar a luta pelo fim da segregação é urgente e necessário.
João Pedro, Rodrigo, Kauan, Evaldo, Agatha, Marielle e milhares de outros em nosso país, tiveram suas vidas interrompidas pela violência e perversidade de nossa herança escravocrata e racista, acentuada neste momento em que nossa jovem democracia é tão atacada por aqueles que hoje ocupam o Palácio do Planalto e seus seguidores.
Pensar esses acontecimentos e a emergência de discuti-los sob o olhar psicanalítico, levou-nos à nossa série “Vidas Negras Importam”, um formato inédito em nossas publicações justificado pelo reconhecimento de uma dívida que os trezentos anos de escravidão nos deixam, especialmente quando reproduzimos nosso racismo que, por ser estrutural, é, na maioria das vezes, negligenciado. Aos convites que fizemos, somam-se as contribuições espontâneas, e a todos os colegas que compõem nossa edição de julho – incluindo, é claro, os autores dos textos e seus comentaristas – somos gratas pela enorme riqueza que trouxeram ao nosso debate. Vale notar que os textos dialogam entre si e acabam por trazer um mosaico de nossas feridas, permanentemente abertas pelo cenário de intensa desigualdade social e discriminação.
Assim, Ignacio Paim (SBPdePA) inaugura nossa série impactando-nos com sua denúncia e testemunho sobre o quão pouco – ou quase nada – importam nossas vidas negras, num RACISMO À BRASILEIRA que se infiltra em nosso país há mais de quinhentos anos, “engendrado pelo branco europeu, que fez da cor da pele do africano o desígnio de seu destino de inferioridade, a fim de justificar o injustificável: sua escravidão com requintes de crueldade”. Traz nosso mito fundador e o quanto a lógica fascista da horda selvagem está presente neste “Brasil para os brasileiros brancos, com suas crenças eurocentristas e colonizadoras”. Emocionado, Ney Marinho (SBPRJ), ao comentar o texto, lembra-nos da esperança que o grupo de Viena alimentou sobre a capacidade da Psicanálise em nos trazer um mundo melhor, “com relações verdadeiramente fraternas”. Ao mesmo tempo, colegas como Rafaela Degani (SBPdePA) e Liana Albernaz (SBPRJ) apontam para a quase total ausência de negros nas nossas sociedades psicanalíticas, em nossos consultórios, ou para a falta dessa temática em nossos seminários de formação. Uma discussão que será aprofundada em tantos outros textos e comentários.
Lina Schachter Castro (SPFor) brinda-nos com sua sensibilidade no ensaio “Vidas Negras Importam II”, relatando-nos como, atravessada por sua branquitude e sua experiência com pacientes negros na Filadélfia (EUA), confrontou-se com a realidade do racismo em nosso país: “a harmonia entre raças…é um mito social”, a “nossa história é repleta de omissões que, claro, serve a alguém”. Lembra-nos da queima de todos os arquivos referentes à escravidão, a mando de Rui Barbosa, o que nos “retirou a oportunidade que poderíamos ter, enquanto sociedade, de reconhecer a carga violenta que o nosso país carrega, inviabilizando críticas, confrontos e, o mais importante, reparações”. Traz-nos o psicanalista africano M. Fakhy Davids, que defende a ideia de uma “organização racista, principalmente inconsciente, em todos nós”, que poderia nos levar à “paralisia psíquica ao lidar com comportamentos raciais abusivos em outros”. Conclama-nos a pensar sobre o nosso silêncio a respeito dos inúmeros crimes cometidos contra a população negra e a nos perguntar a respeito da representatividade dos negros em nossas sociedades psicanalíticas. Sua sinceridade e transparência geram inúmeras reflexões, a ideia de uma ação afirmativa como a criação de cotas em nossa formação é trazida com ênfase entre os comentários.
Sylvain Levy (SPBsb) , em seu forte texto/desabafo “O Ministério da Saúde adverte: nada a declarar”, tudo a esconder, valendo-se de sua experiência na área da saúde pública, mostra-nos o “descalabro” que estamos vivendo em plena crise sanitária. Observando a fatídica reunião ministerial de 22 de abril, que definiu como “autêntico redescobrimento pátrio”, apontou para as características psíquicas de nosso presidente: negacionismo, belicismo, paranoia e necrofilia, o que o leva a uma extrema incapacidade de gerenciar o país. Ressalta, ainda, a entrega do MS aos militares e a enorme lista de impropriedades cometidas por eles, dentre elas a decisão de não mais divulgar o número de infectados e mortos por COVID-19. Destaca, em sua conclusão, que negar a informação e a própria ciência, é “agredir a cidadania, a verdade e a democracia”. Beth Cimenti (SPPA) nos traz, em seu comentário, a seguinte questão: “terá uma pessoa, despossuída de capacidades essenciais ao ser humano medianamente sensível, direito de transtornar dessa maneira a vida de um povo?” Embora desnecessário, vale lembrar que as vidas mais afetadas pelo “descalabro” apontado acima são as vidas negras.
Em “Vidas Negras Importam III”, Maria Elisa Alvarenga (SBPRJ) revela-nos que “foi o encontro do branco com o negro”, durante o período colonial, “que fez o negro virar o negro”. No seu texto generoso, ajuda-nos a pensar com Grada Kilomba – onde ‘o eu da pessoa branca é medido e sustentado pela coisificação da pessoa negra’; com Pontalis – para quem o racismo está relacionado à conturbada e angustiante experiência com o duplo, ‘este que é meu semelhante e diferente de mim’; e com o antropólogo Kabengele Munanga, que descreve nosso racismo como a realização de um ‘crime perfeito’, pois ‘além de matar fisicamente, ele alija, pelo silêncio, a consciência tanto das vítimas quanto da sociedade como um todo, brancos e negros’. Silêncio que está presente em nosso meio, continua Maria Elisa, onde não estudamos Virgínia Bicudo, mulher negra, pioneira da psicanálise em São Paulo e Brasília, ou quando analistas brancos silenciam a voz de analisandos negros ao não escutarem a sua dor em sua especificidade. Seria para nos protegermos “de reconhecer o mundo subjetivo das pessoas negras? O mundo no qual, nós, brancos, somos os opressores?”. Conclui que “é preciso enegrecer a nossa escuta para podermos escutar o racismo e reconhece-lo na voz de nossos pacientes”. Fernanda Marinho (SBPRJ), ao comentar o texto, traz emocionante relato de sua experiência vivida, em reunião na SBPRJ, com o testemunho da jornalista negra Flávia Oliveira – que confirma a dificuldade na escuta dos analistas brancos – e o incômodo que esta fala provocou em seus pares: “…senti imensa tristeza, era verdade, embora negasse tudo que podemos reconhecer como constitutivo da função psicanalítica…Flávia nos apontava, elegantemente, ‘o Rei está nu!’ O mesmo fez você, Elisa, e a louvo por isso”. Wania Cidade (SBPRJ), de forma tocante, compartilha a sua dor e suas reflexões que nos mostram o isolamento sofrido do negro, que, alijado das posições de poder, é marcado pela “manutenção do pensamento colonial branco”, o qual imprime “a estrutura racista que dessubjetiva, inviabiliza e subalterniza o sujeito negro”.
Na bela parceria de Beth Mori e Cláudia Carneiro, ambas da SPBsb, temos o episódio “Vidas Negras Importam IV”, uma contundente denúncia sobre a dupla opressão historicamente sofrida pelas mulheres negras, atravessadas ao mesmo tempo pelo racismo e pelo machismo estruturais que as impedem de serem reconhecidas como sujeitos: não são brancas, nem homens. Defendem a ideia de um inconsciente marcado pela “cor da pele negra…, como uma forte impressão psíquica, traumática”, uma vivência que pode ser representada por um verdadeiro ‘apartheid psíquico’, conforme citação da psicanalista negra Isildinha Baptista Nogueira. Lembram-nos de como Simone de Beauvoir, Grada Kilomba e Djamila Ribeiro apontam essa cadeia que coloca a mulher negra neste “lugar de outro do sujeito”, e convidam-nos a pensar o significado do “corpo negro da mulher no sistema simbólico da cultura”. Assim, mostram-nos a enorme desigualdade sofrida pela mulher negra em relação à branca, desde os índices da sua renda mensal àqueles que retratam o feminicídio ou a violência obstétrica. Acrescentam, ainda, a dificuldade da mulher negra em se fazer escutar num contexto eurocêntrico e branco como é o da origem da psicanálise. “O racismo produz sofrimento psíquico…essa dor de quem vive na própria pele o preconceito é de ordem narcísica, vive um rasgo na própria alma”. É fundamental que a psicanálise possibilite a nomeação do sofrimento pelo sujeito, concluem, “levando em conta os fatores identitários que incluem a verdade de sua história, sua cultura, seu grupo e sua singularidade”. O texto suscitou uma enorme e emocionante participação na seção de comentários, como a de Cláudio Eizirik (SPPA), que observou, dentre outras coisas, que a inusitada série no OP retratando um mesmo tema revela que “a escravidão e o racismo brasileiro constituem o grande tema negligenciado, o grande escândalo, a grande omissão, o ensurdecedor silêncio de nossa história e de nossa formação como cultura e nação. Enquanto isso não for enfrentado…, continuaremos a ser este triste e vergonhoso país”.
Recebemos também, em nosso OP, uma “correspondência” que merece destaque: “De Freud para as torcidas organizadas”, de Gustavo Gil Alarcão (SBPSP), que de forma criativa e deliciosamente inventiva, coloca-se na pele de Freud e no assombro e perplexidade que ele certamente sentiria diante do imbróglio político em que nos metemos desde a nossa última escolha eleitoral. Tocado pelas manifestações democráticas de algumas de nossas torcidas, fala-nos da pulsão de vida presente em nossos estádios, assim como da destrutividade de que somos capazes, em especial quando estamos agrupados. “Freud” está preocupado com nossa ida às ruas pela democracia diante de um governo truculento como o nosso, coloca-se ciente, em plena Segunda Grande Guerra, da tragédia que se anuncia sobre o povo judeu, “comparável à escravização africana e a outros genocídios repulsivos”, afirmando a importância de se produzir registros que possam ajudar no enfrentamento do trauma. Despede-se com o reconhecimento de nossa causa e com um carinhoso abraço! O texto de Gustavo nos traz humor e sensibilidade, um respiro nesses tempos tão duros bastante apreciado pela nossa comunidade OP, e provoca a também bem-humorada e espirituosa carta-resposta a Sigmund, de Anne Pfluger (SPPA), em que ela agradece a rica contribuição de Freud neste momento, “assim como de toda tua obra que segue sempre sendo muito útil para entender a mente humana…”.
“Por um mundo visível e vivível: Difícil Respirar”, texto de Lúcia Palazzo no (SBPRJ), nos inquieta a todos ao retratar de forma aguda os tempos claustrofóbicos em que vivemos. Convoca a contribuição psicanalítica para, a partir da experiência singular, “nos auxiliar na busca de saídas coletivas”. Lembra-nos que, logo após a primeira guerra, clínicas de atendimento psicanalítico gratuito foram criadas pelos analistas da época, incluindo Freud. Afirma a importância das sociedades psicanalíticas atuais incluírem, em sua pauta de atendimento e estudos, a realidade de nossa violência e desigualdade social, onde cursos sobre o racismo estrutural, entre outros temas, possam estar presentes. Chama-nos a atenção para o trabalho de Vera M. Batista, que, em livro publicado em 2003, coloca o aumento do medo do branco com o fim da escravidão e da monarquia, fundando “uma República excludente, intolerante e truculenta”. Diante de tantas desigualdades, pergunta-se, “quais seriam as bases de um mundo vivível?”. O mundo vivível, prossegue, precisa ser visível, precisa tirar da invisibilidade aqueles que, por conta de nossa herança escravagista, são excluídos do acesso aos direitos humanos fundamentais. O discurso fascista viceja. A psicanálise, em sua tarefa de fazer circular a palavra e se contrapor à força autoritária, representa a própria resistência, “somos a tempestade”, conclui, que fará frente ao fascismo. “Um texto que provoca o interesse pelas origens do racismo e genocídio contra o estranho…”, que “ causa uma forte irrupção de sentimentos e ideias! E certamente provocará ações consequentes”, nos diz Miguel Sayad
(SBPRJ).
Helder Pinheiro (SPFor), em “O Painel Branco e a Política do Faz de Conta”, acentua o descaso do atual governo e sua denegação em relação à gravidade da pandemia, estratégia que visa “inocular a incerteza e a desinformação na população”. Ressalta as atitudes racistas e discriminatórias que estão na base de nosso ataque à democracia, levando ao sofrimento os milhares de Severinos que buscam atendimento médico que os acolha em seu desamparo, numa referência ao poema “Morte e vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto. “Não é razoável aceitar passivamente a morte de milhares de cidadãos como resultado dos desmandes de poderosos…temos que dar voz aos Severinos que buscam uma sina melhor do que aqueles que os precederam…”. Ana Valeska Maia (SPFor) traz generosa contribuição, destacando o projeto genocida da equipe que lidera o executivo nacional e o contraponto dos memoriais que contam as histórias das vítimas de Covid, emocionando-nos com algumas delas e nos trazendo esperança ao relatar “a força de coletivos de profissionais que abraçam a ética do cuidado. Pois, no combate para enfrentar as mortes de tantas vidas severinas, não há luta efetiva contra o desmantelo das coisas que não seja amorosa”.
Encerrando de forma brilhante nossas publicações de julho, Sônia Eva Tucheman (SBPRJ) em “Vidas Negras Importam V” traz, com “doído esforço” e coragem, o mergulho na mente do racista, penetrando “no seu mundo subjetivo como requer a função analítica”, perguntando-se, inspirada por Primo Levi: É isto um Homem?”. É impressionante como ela desvela o terror na imagem da cena tão bem descrita e no que estaria pensando aquele policial que, no alto de sua arrogância e indiferença, ajoelhado de forma displicente sobre o pescoço de George Floyd, expressa todo o seu desprezo à vida negra. Samantha Nigri (SBPRJ), além de ressaltar a qualidade literária do texto de Sônia Eva, coloca seu poder visceral em nos falar da “brutalidade que queremos ignorar, que fomos ensinados a não enxergar… Um psicanalista pode até ter horror…, mas precisa olhar para o mal, visto que quando não se repara nos detalhes mais sórdidos dele, como bem reparastes nas mãos no bolso do assassino, corre o risco de fazer uma psicanálise desbotada e pior: contribuir para o aumento dos sofrimentos de quem por ela passa”.
Por último, e não menos importante, nossa curadoria, entendendo que a invisibilidade presente no racismo estrutural requer ações afirmativas e reparadoras, indica a releitura do ensaio número 49/2018, publicado em nosso Observatório Psicanalitico, no site da FEBRAPSI, em maio 2018: “Herança Escravagista: Uma síntese”, das colegas, da SBPRJ, Cristiane Rangel, Eloá Bittencourt, Maria Elisa Alvarenga e Wania Cidade.
https://febrapsi.org/publicacoes/observatorio/observatorio-psicanalitico-492018/
Curadoria OP
Beth Mori (SPBsB)
Daniela Boianovsky (SPBsB)
Ludmila Frateschi (SBPSP)
Marina Bilenky (SBPSP)