Editorial – Observatório Psicanalítico – janeiro/2021
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Editorial – Janeiro de 2021
Iniciamos 2021 marcados pelas dores e perdas de um ano que parece não ter fim, pela angústia de vivermos em um país onde a perversidade tomada como método por seus governantes parece atacar o próprio princípio de realidade, e nos arrastar não somente para a pior condução da pandemia que tomou conta do planeta, mas também para o enfrentamento de uma grave crise humanitária: de nossos porões, sobem à superfície, com assustadora liberdade, a destrutividade, o ódio, a intolerância ao outro que ameaçam nossa sobrevivência física e mental. Ao mesmo tempo, a capacidade da pulsão de vida mostra-se vigorosa na insistência de muitos pela busca do conhecimento, pela afirmação dos valores civilizatórios, pelo respeito às diferenças. É um verdadeiro campo de batalha de sobreposição de narrativas, de mentiras calculadas e negacionistas, que se digladiam com aqueles que lutam pela verdade, pela Democracia, pela justiça e igualdade social e que nos trazem, mesmo que ainda frágil e vulnerável, um fio de esperança na nossa capacidade de mudança e crescimento.
O Observatório Psicanalítico, fazendo-se valer da sensibilidade e delicadeza de Fernanda Lacerda (SPBSB), e de seu olhar que privilegia a vida, dá as boas-vindas ao ano novo através de seu ensaio “Caminhos de 2020, Esperança 2021”. Nele, ela nos ajuda a representar o desamparo que vivemos em nossa realidade-labirinto, ao mesmo tempo que nos apresenta o fio amoroso que poderá nos conduzir para fora desse emaranhado. E a nos responsabilizar, como nos diz Beth Cimenti (SPPA), pela busca destes caminhos, antes de tudo, dentro de nós.
E é por esse fio que chegamos à tocante homenagem que Elias e Elizabeth Rocha Barros (SBPSP) fazem a Talya Candi, psicanalista da Sociedade de São Paulo. Em um momento de tantos lutos, a tristeza da morte precoce de uma amiga e colega tão valiosa dói em nossa alma já tão ferida. De forma afetiva, nossa dupla de autores nos conforta: “…quando conhecemos bem uma pessoa, ela sempre viverá dentro de nós, sempre será alguém com quem podemos dialogar”, e, com Guimarães Rosa, nos dizem: “Talya não morreu, encantou-se”. De fato, nos encantou a todos pelo seu pensamento e profícua produção psicanalítica, e de forma privilegiada, àqueles que desfrutaram de seu convívio, como podemos testemunhar, por exemplo, através do comentário emocionado de Daniel Delouya (SBPSP).
Dando continuidade à nossa série Vidas Negras Importam, recebemos, neste mês, mais duas importantes contribuições. Na primeira delas, Ignácio A. Paim Filho (SBPdePA) e Augusto M. Paim – Sig.Mundo e CEPdePA, pai e filho, nos brindam com seu ensaio “Na dialética da violência e do direito”, em que expõem o racismo institucional presente, particularmente, em nossas leis, confeccionadas pelos e para os brancos, perpetuando não somente seus privilégios em detrimento dos direitos da população negra, como seus atos de violência herdeiros de nossa estrutura escravocrata. Pai e filho nos sensibilizam, através da apropriação de sua negritude, da dor de viverem a identificação, cada um a seu modo, com o extermínio de crianças e jovens negros que é praticado pela violência racista dos representantes da lei. Mais uma vez, é a Eros que devemos recorrer para transformar a pulsão de morte “em pressão que cause inquietação” e que possa desnaturalizar a necropolítica de nosso Estado. O texto é uma convocatória contundente para que coloquemos em pauta – e com urgência, acrescentamos – a nossa branquitude. Sua repercussão e aceitação podem ser sentidas nos comentários de nossos colegas. Sérgio Nick (SBPRJ), coloca: “Como psicanalistas, sabemos que a saída encontra-se no ‘Vidas Negras Importam’. Num duro e longo processo de reconhecimento da violência perpetrada por nós, brancos. Uma elaboração penosa da culpa por tratarmos o outro como mero objeto, como alvo do nosso ódio desumanizante”, e nos dá a boa notícia de que a IPA acaba de aprovar um fundo emergencial de ajuda aos membros latino-americanos. Uma ação afirmativa que reconhece que é preciso cuidar daqueles que são desfavorecidos economicamente.
O segundo texto da série “Vidas Negras Importam” é o tributo que Helena Daltro Pontual (SPBSB e SBPSP) nos oferece em “Juliano Moreira, um baiano que deixou rastros de luz no planeta” à memória desse psiquiatra, negro, “filho de uma empregada doméstica ex-escrava”, que foi fundamental na luta pelo tratamento humanizado à saúde mental, fundador do ensino da psiquiatria em nossas universidades e pioneiro na difusão das ideias de Freud em nosso país. Sua biografia, de extrema riqueza, nos é descrita por Helena em relato meticuloso, onde aponta o quanto ele era “voz discordante quanto a aspectos sociopolíticos e culturais da época, um dos quais atribuía a ‘degeneração mental’ do povo brasileiro à mestiçagem, especialmente à população negra”. E mais à frente, destaca: “Ao apresentar o trabalho sobre pansexualismo na obra de Freud, em uma aula inaugural da Faculdade de Medicina de São Paulo, em 1919, Franco da Rocha despertou interesse em um dos seus alunos, Durval Marcondes, que viria a ser o fundador do movimento psicanalítico no país e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SPBSP) – a primeira associação psicanalítica da América Latina, criada em 24 de novembro de 1927”. Vidas negras importam, e histórias como a de Juliano nos fazem pensar quantas delas não tiveram oportunidade para desenvolver seus talentos, e no quanto perdemos a cada vida que foi ceifada.
E ao nos lembrarmos das inúmeras vidas interrompidas ao nosso redor esbarramos, dolorosamente, no número escandaloso, até o momento, de mais de 200.000 mortes por Covid, relacionadas a uma política errática e criminosa praticada pelo governo federal. Os habitantes da cidade de Manaus, vizinhos ao pulmão do planeta, morrem pela falta de oxigênio nos hospitais. O estado do Amazonas agoniza, nos vemos aflitos ao tentar retomar o fôlego que nos faça capazes de lutar e resistir ao quadro de desamparo que se transformou o nosso país.
“Lutos asfixiados em tempos de Covid” é o ensaio corajoso e impactante de Roosevelt Cassorla (SBPCampinas e SBPSP). Leva-nos à realidade de um país moribundo, que morre por asfixia em vários momentos de sua história, numa agonia que encontra, no descaso da atual equipe governante diante dos riscos à saúde de sua população, uma morte anunciada. Uma morte que já nos era conhecida “dos navios negreiros, dos massacres nas prisões, dos transportes coletivos superlotados, das habitações sem saneamento, da asfixia dos direitos humanos refletindo-se no sistema de saúde. Nessas situações, toda a energia é gasta na tentativa de respirar. Sem ar, grupos humanos são controlados quando buscam, apenas, sobreviver. A miséria, a desconfiança, a indiferença, a perversidade, a exclusão social, são ‘naturalizadas’”. Compartilha, então, alguns relatos de pessoas enlutadas por perdas causadas por Covid, atendidas pela equipe do hospital universitário HC-Unicamp, onde a dor causada pela morte de um ente querido é intensamente potencializada pelas vicissitudes de uma pandemia que os impede de acompanhar o doente ou de cumprir os rituais fúnebres de despedida, dentre outras coisas. “O luto fica sufocado, asfixiado, e a vida é travada”. E é como nos sentimos quando lemos as falas dos pacientes, asfixiados, profundamente tristes, quase que travados diante do impacto de cada relato, ao mesmo tempo que nos imaginamos acolhendo o luto de cada um deles, como sintetiza a colega Cláudia Carneiro (SBPSB) em seu comentário: “Seu texto, Cassorla, é um ato amoroso de respeito e reconhecimento à dor dos que perderam seus entes queridos… Cabe-nos manter o espírito vivo para trabalhar pela saúde mental das pessoas que alcançarmos, como fez você nesse trabalho junto à equipe do Hospital da Unicamp”.
O dia 27 de janeiro foi o escolhido, pela ONU, como Dia Internacional da lembrança do Holocausto. Diversos foram os grupos perseguidos e mortos pelo nazismo. Além dos seis milhões de judeus, outras minorias foram atingidas, como os ciganos, os homossexuais, os imigrantes, os opositores políticos. “A doutrina da qual nasceram os campos é muito simples: todo estrangeiro é um inimigo, e todo inimigo deve ser suprimido; qualquer um que seja visto como diferente, por língua, religião, costumes e ideias é estrangeiro. Os primeiros ‘estrangeiros’, inimigos por definição do povo alemão, se encontravam na própria pátria” (Primo Levi, “Assim foi Auschwitz”). Apesar da data fazer referência à libertação do campo de concentração de Auschwitz, vale lembrar que o projeto do Holocausto tem início nas Leis de Nuremberg, de setembro/1935. Violência calcada no direito, como nos mostram Ignácio e Augusto Paim.
Vivemos o recrudescimento de ideias nazifascistas: racismo, antissemitismo, ataque sistemático à alteridade e à razão se fortalecem e permitem cenas como as que vimos na violência policial que vitimou João Alberto Freitas em Porto Alegre, ou no parlamento estadunidense, invadido por manifestantes contrários à confirmação da eleição de Joe Biden.
Fantasias narcísicas de onipotência reforçam lideranças nefastas, alimentam o negacionismo, a dor da desmentida, visam a morte do pensamento, e como Freud aponta em “Psicologia das massas e análise do eu” (1921), podem se propagar de forma assustadora. A estética do pensamento nazista é claramente propagada por inúmeras frases pronunciadas por integrantes do atual governo. É necessário resistir e fazer valer a constituição cidadã de 1988 na sua defesa dos direitos humanos, ao contrário do que vem fazendo uma parcela significativa de nossos agentes públicos, que a negam ou aplicam, à lei, uma interpretação enviesada por suas próprias referências ideológicas, preconceituosas e discriminadoras.
Acreditamos que nosso compromisso, como psicanalistas, é pelo direito à dignidade e igualdade social, pelo respeito e tolerância às diferenças, pela luta por um presente que, mesmo trazendo as marcas do passado, possa servir como ponto de partida para um futuro muito além da repetição de nossos traumas.
Que o ano de 2021 nos traga esperança e força, que possamos, juntos, agarrar o fio que estendemos no início desse editorial e nos manifestar, reagir, rechaçar o discurso de ódio que invadiu e seduziu o país. Que na batalha entre Eros e Tanatos, vença o primeiro (Freud, 1930).
Equipe de Curadoria
Beth Mori (SPBSB), Daniela Boianovsky (SPBSB) e Ludmila Frateschi (SBPSP)
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
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Os ensaios do OP são postados no site da Febrapsi. Clique no link abaixo: