Do que é feita a maçã?

Observatório Psicanalítico – 86/2019

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

Do que é feita a maçã?

Daniel Delouya (SBPSP)

Amos Oz nos deixou na última sexta-feira do ano que passou. Partiu cedo, muito cedo, e não por escolha sua. A doença o venceu. A notícia, que me chegou em meio a uma viagem de férias, teve sobre mim um impacto de estranhamento, anestesiando o efeito comum do choque com que se encara a morte de pessoas que nos importam. ‘Ele era jovem’, foi o pensamento latente que logo emergiu ‘e jovens não deveriam morrer; é cruel e injusto conosco quando a morte os alcança’. 

Assim eu o conheci, assim eu o assisti, assim eu o acompanhei durante 45 anos, mas não continuamente. Lembro-me da primeira vez, e não me recordo se houve uma segunda ou terceira. Talvez houvessem, mas isso não importa.  Foi em 1974-5, eu frequentava o segundo colegial (na época ele era professor do ensino médio) e fui ouvi-lo no centro comunitário por ocasião de sua filiação ao movimento de Paz, agora fundado por um grupo de comandantes de reserva do exército israelense. Ouvi ele, assim, sentado (no chão) a três metros de distância dele, em um espaço abarrotado de gente. Homem bonito, olhar intensamente acesso, palavras precisas, que parecem emergir de uma fonte inesgotável, mas sem nenhuma tolerância ao desperdício. A força, o frescor, a ousadia, sobretudo ela, nunca abandonaram Amos Oz até o seu último dia. Essa era a sua juventude. 

Oz, que em hebraico significa força, ousadia, ímpeto, coragem, foi o sobrenome que ele escolheu adotar aos 15 anos de idade, três anos após o suicídio de sua jovem e amada mãe, quando resolve abandonar a casa e a cidade e se mudar para o Kibutz Hulda. Substituiu um sobrenome extremamente respeitado, Klausner, do pai e do tio – intelectuais, assim como sua própria mãe, imersos e destacados nos ofícios da língua e do pensamento contemporâneo. Ele ansiava sair do mundo denso e carregado da cidade velha Jerusalém onde nasceu para o ambiente arejado do kibutz, para sorver em seu corpo o sol ardente e deixar os seus músculos se valer da doçura que se segue à dor do trabalho da terra. Entretanto, nessa mudança radical de vida para essa comuna, na qual permanece 32 anos, ele encontra um terreno novo para a comunicação e justamente de seu mundo da infância, de Jerusalém e de Israel em seus inícios. Amos Oz transformou o caráter irado do profeta Amos, de quem herdou o nome, para um modo louvável de comunicação. 

Conforme sua filha Fania no dia da despedida final, seu pai se utilizou, sensível, das lagrimas das gerações passadas para fertilizar o novo solo judaico, estando consciente do cuidado necessário para a abertura deste inédito capitulo na longa história deste povo.

Juventude e capacidade extraordinária de comunicação, literária e política, marcam a vida deste escritor assim como de seus leitores. Oz sempre distinguiu sua produção escrita literária de uma outra, dos ensaios no campo da vida política e do pensar sobre o cotidiano. A comunicação oral era a forma primeira deste segundo gênero. Entretanto, as duas, a literária e ensaísta, se iniciam juntos, no mesmo período, e assim permanecem até o fim de seus dias. O seu romance autobiográfico Entre amor e trevas (2002), que lhe conferiu a maior notoriedade, destaca a fonte comum a esses dois gêneros de escrita. 

Naturalmente eu não poderia fazer resumo fiel da obra de Oz, mais ainda porque não o acompanhei continuamente. Por um lado, escritores israelenses de sua geração ou em seguida a ele como Avram. B. Yehoshua e David Grossmann, também engajados no universo político, tiveram, como escritores, um impacto maior sobre mim. Por outro lado, Oz me aborreceu em certo momento, embora fosse o primeiro entre os três com quem travei conhecimento.

Meu Michael (1967), seu segundo romance, comparecendo logo depois de seu primeiro livro de contos (Os campos dos chacais, 1965), foi uma verdadeira obra prima, escrita em voz e alma de uma jovem mulher em volta de uma história de amor em Jerusalém. Emociona como inicia a fala da jovem narradora: ‘Escrevo porque as pessoas que amei já partiram. Escrevo porque quando menina eu tive dentro de mim uma imensa força de amar e agora essa força está morrendo. Não quero morrer!’ Esse romance, que ainda continua gerando ‘vitimas’ de identificações femininas pelo mundo (traduzido para 35 idiomas), em que leitoras continuaram indagando o autor ‘mas como você chegou a me conhecer, meu deus?!’ abriu um período de duas férteis e elogiadas décadas da escrita de Amos Oz. Outro Lugar (1967), Até a morte (1971), Tocar a agua, tocar no vento (1971), Os outros (1974), O monte do mau conselho (1976), Somchi (1978), Repouso bem posto (1982) são frutos desse período, que recomendo visitar já que abrigam os sementes de muitos títulos, honrarias e prêmios (Goethe, Heine, Tolstoi, Kafka, Kiung-Ni, Dagerman, para citar só alguns internacionais) que Oz ganhara posteriormente. 

Não obstante, sua atividade ensaísta e política se inicia concomitantemente com a literatura. Um mês e meio após a fatídica (revelando ser, posteriormente, trágica) vitória de Israel na guerra de seis dias, de 1967, em que o país acaba conquistando mais do que o dobro de seu território, Amos Oz, apenas com 28 anos de idade, alerta sobre o risco de uma degradação moral do Estado de Israel caso este não abrisse mão de dominar e oprimir um outro povo com iguais direitos sobre a terra. No artigo “O ministro da defesa e o espaço de convívio”, ele insiste sobre uma única solução para a longa disputa entre dois povos sobre o domínio da mesma terra: a divisão do território entre dois povos, constituindo dois estados livres. A guerra seguinte em 1973, iniciada apenas pelos egípcios e sírios, foi o sinal de derrota, e sobretudo do vislumbre do perigo que corre Israel em levar o projeto sionista água abaixo, para a terceira destruição da própria casa na história judaica. Paz Agora nasce logo depois onde a presença de Amos Oz dá voz ao movimento de paz pelo mundo afora.

O seu primeiro livro de ensaios ‘Sob a intensa luz’ comparece em 1978, o primeiro da serie de uma dezena de livros, entre muitos artigos em Israel e no mundo que ainda não foram editados. O mais conhecido, e dos últimos, desses livros, é Caros fanáticos (2017) – aqui há, em hebraico, um duplo sentido, de cumprimentar ‘Ola, benvindos fanáticos!’ e paz para e com os fanáticos – e que na versão ampliada ‘Mais de uma luz’ integra um pensamento importante sobre a renovação da história e da tradição judaica.

Embora Oz continue produzindo intensamente literatura e reflexão entre 1983 e 2002, a crítica se decepciona com essas suas duas décadas, e eu também, quando deixo de segui-lo mais de perto. Uma nova mudança de vida desponta naquele momento. Ele larga, em 1986, o Kibutz e se muda para uma cidade construída no deserto, aparentemente em função de seu filho caçula que sofre de problemas asmáticos. “Aqui e ali em Israel” (1983) é um livro de relato de viagem pelo país e de reflexão sobre o mesmo e que a mim causou mal-estar e irritação. Oz demonstra nele, como toda a sua geração, filhos dos bandeirantes, uma certa cegueira e intolerância à cultura dos imigrantes, de tradição norte-africana, entre outras, que naquele período já haviam se instalado no país há duas décadas e alterando significativamente não só a demografia, mas também os modos de concepção do sonho sionista. Um esforço imenso – também neste deslocamento familiar dele do Kibutz para Arad, cidade que aliás era composta de uma grande parte desses imigrantes – para lidar com essa Caixa preta surge com este livro epistolar (1987) que teve uma imensa acolhida em função de sua qualidade literária. Porém, essa obra que foi massacrada, com razão (a julgar pelo meu sentimento de ofensa), em seu país, pelo grau de preconceito. Não obstante, com esse belo título, há um esforço autêntico e admirável de penetrar uma realidade da qual, até então, ele não estava inteiramente a par. Recentemente, no ultimo livro de entrevistas, ele se arrepende de não ter trabalhado mais esse livro, e que, no entanto, teve uma grande difusão. 

Oz nunca parou de escrever embora tivesse reconhecido com dor a perda de um certo entusiasmo, um abandono, por parte de seus críticos e leitores neste período de quase vinte anos [Conhecer uma mulher, A terceira condição, Não diga noite são parte dos romances deste período], mas que eu considero um profícuo intervalo de elaboração depressiva que acaba enriquecendo e imensamente sua próxima produção literária. Isso ocorre inicialmente com o livro de poemas, O mesmo mar (1999), mas sobretudo com seu romance autobiográfico Entre amor e trevas (2002).

As obras desde então e até a sua morte são muito vivas e conhecidas. 

Quero, porém, voltar ao aspecto essencial da qual se constitui essa figura tão importante para o nosso tempo: sua capacidade de comunicar e despertar os seus leitores e ouvintes. No livro Entre amor e trevas e, sobretudo, neste ultimo do qual emprestei o titulo para essa homenagem, ele afirma que a fonte da escrita está na escuta, na curiosidade pelos outros. Ainda criança, e filho único, ele era levado junto, pelos pais, aos encontros com os adultos e, para ele não os atrapalhar, o deixavam em uma mesa ao lado, com uma taça de sorvete. Mas do que ele realmente saboreava são as conversas, aos quais tem sido atento ‘feito detetive, um agente secreto’ desde então e ao longo de toda sua vida. Mas de que é feita esta escuta? Para se tornar um escritor é preciso, dizia Oz, ter em relação a vida dos outros, a autêntica curiosidade, a compaixão (aqui, infelizmente, a tradução da palavra hebraica chemla é insuficiente – compadecer, identificar-se com que o outro passa), o humor e a empatia. A curiosidade não é aquela em função de domínio e do controle imaginário ou factível do outro, mas aquela excitante e de imaginativa fruição que se apodera das palavras à medida que se fia ao fundo inesgotável do mistério deste outro presente em cada uma de nossas paixões, em cada resquício da vida, situada desde sempre nesta primazia do outro. E que na psicanalise identificamos como sedução originaria. Já chemla, compaixão com o outro, sua dor, ocorre na descoberta da separação e de nosso desamparo, e, portanto, de nossa comunhão aos outros, onde o humor e a empatia são ingredientes indispensáveis. 

Uma imagem bonita que Oz utiliza é que o homem é uma península; de um lado está associado ao continente de identificações variadas aos outros – pessoais, sociais e culturais-, porém esses se criam sobre o fundo desta sedução originária dos anseios, do mistério infindável deste outro, desta coisa outra em nós; do mar e dos territórios aos quais promete nos levar, todos tributários desta germinação da língua, desse jogo dos possíveis de um sempre.

Essa reflexão de Oz, num tempo de maturidade, sobre as fontes da escrita, muito se aproxima ao que o jovem Freud de 1895 atribuirá aos valores, de um lado, da sedução, e de outro, da compaixão, do conhecer humano. Vou concluir com uma outra reflexão conexa de Oz encontrada num livro recente ‘de seis conversa sobre a escrita, o amor, a culpa e outros prazeres’ (este é o subtítulo) e é sobre a questão de onde brotam os contos: Oz reluta em poder responder e em algum momento diz, ‘vamos pensar na maçã. Do que é feita a maça? Água, terra, luz do sol, arvore, lixo orgânico… Sim, mas a maçã é outra coisa, não parece com nenhum destes componentes. Assim é o conto, ele certamente se deve aos encontros, escutas e experiências, mas não se reduz a nenhum deles’ (p.12/311). 

Do que é feito o nosso conto? O psicanalítico? Há anos se debate: pulsões, objetos, relações de, com, etc… mas ele, essa língua, essa linguagem do que somos feitos, como a maçã , com suas conotações da sedução originaria humana, jamais se reduz a esses aspectos discursivos… O livro, Do que é feita a maçã (2018) deve logo comparecer em português e que eu muito recomendo, mas aqui quero concluir com uma especulação.

Amos Oz – coragem, ousadia, paixão e palavras – se implicou em dois gêneros de transmissão de suas verdadeiras lutas. O primeiro diz respeito à dor e às fontes do amor, nessa identificação e indagação – esplendidamente trazidas na voz feminina de sua narradora de Meu Michael, redigido com 25 anos de idade, tornando-se consciente e do qual nos torna testemunhos aos 63anos, no Entre amor e trevas – acerca e com os anseios e saudades de sua mãe que se suicidou. Por isso, ‘não quero morrer!’ (Meu Michael, 1967) é o esforço nesta moça (na mãe dentro do filho) que a literatura (todas femininas) de Amos Oz tenta resgatar. O segundo, o ensaísta e político é uma luta e debate com a tradição social e política revisionista de seu pai, tio e família (do qual brota a desastrosa centro-direita israelense, desde Jabotinsky, Begin e até o Netanhahu). Amos Oz dizia dedicar-se ao conto pelo amor, pelo corpo das palavras, das conversas interiores, e aos ensaios, pela raiva e revolta. Entretanto, as duas correntes não faltam a nenhum de seus livros, e alcançando um ápice de coragem no seu Judas (A mensagem de Judas).

Adeus Amos!

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

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