Observatório Psicanalítico – 115/2019
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
“… Devíamos nos alegrar porque os tempos tinham mudado…”
Eloá Bittencourt Nóbrega (SBPRJ)
“A sinhá Ana Felipa disse que devíamos nos alegrar porque os tempos tinham mudado e os monogramas eram bordados nas roupas e não mais na pele dos escravos. Contou que ao se casar, além do enxoval , a mãe dela ganhou duas mucamas e três pretos, todos com o monograma gravado no rosto com ferro quente. Disse também que achava que um monograma era muito mais bonito que as marcas que os pretos da senzala grande tinham no rosto, coisas de animais e não de gente. Foi só então que reparei que nenhum dos escravos de casa tinha marcas no rosto e esse era um critério que ela usava ao nos escolher, talvez até pensando em mandar gravar o tal monograma algum dia. Nenhum de nós também tinha marcas de varíola, embora essa doença não soubesse se a pessoa era branca ou preta. Atacava de qualquer jeito, qualquer um, de qualquer idade. Era uma doença boa, cheguei a pensar na época, mas não consegui concluir e justificar o pensamento. Hoje sei que é por causa disso, por ela não fazer distinção e deixar as mesmas marcas em quem quer que seja”. (Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves, 2012, p.94)
O que esse tempo tem a ver com o nosso? Com certeza por algumas mudanças indignas, talvez, as marcas já não sejam tão visíveis, mas com certeza pertencem ao interior da alma de um corpo considerado defeituoso por seu colorismo.
As mulheres, acreditavam os homens da ciência, também tinham um defeito, eram intelectualmente inferiores, cérebro pequeno.
Ah, essas minorias, mulheres, negros, mulheres negras, que tipo de gente é essa?
Precisamos de Política, de laços sociais que não façam distinção, não mais varíolas e mortes, feminicídio e genocídio negro. “Parem de nos matar” diz o slogan do movimento negro. Gritemos todos nós, porque não estamos alegres com a manutenção do racismo, da desumanização e violência.
Não estamos alegres com o tratamento que o Estado tem dado à população afrodescendente e às mulheres. Nos fazer morrer, nos deixar morrer pela brutalidade e pela desassistência é um impacto assustador, que não nos deixa “concluir e justificar o pensamento”. (Idem)
Emudecidos estamos há muito tempo, mas nossos corpos mais erógenos, pulsam por palavras e ações objetivas, correm por grupos mais organizados, quilombos mais fortalecidos, um marco atual na nossa história escravagista, perpetuada por sinhás e senhores brancos.
Figuras de autoridade tão brancas que encarnam o poder fazendo acreditar que a experiência política da branquitude é a única com a qual podemos nos identificar, primazia para a constituição do sujeito.
A política constitui-se pela “incorporação”, é “encarnada”, como diz Safatle, pois entende que a corporeidade política mobiliza afetos, os faz circular, uma
vez que “só um corpo pode afetar outro corpo.” (Safatle, 2016)
O poder político encarnado e ficcional de unicidade e organicidade só poderá ser ultrapassado quebrando os afetos que ele produz, que ele sustenta pelos vínculos sócio-políticos, o que “implica identificar os pontos duros de saturação, ou seja os pontos fantasmáticos que sustentam a coesão estrutural do espaço, a fim de transformá-los … desativar corporeidades que sempre se repetem.” (Idem).
O discurso racista sustenta esses vínculos de hegemonia branca de controle e possessão do corpo negro, para reduzi-lo a uma espacialidade que garanta a invisibilidade do mesmo.
E a discriminação é um processo que torna as pessoas diferentes (Kilomba).
Em 2016, quando escrevíamos o trabalho “Corpo negro: indiferença na vida, indiferença na morte”, para ser apresentado no Congresso Fepal com o tema CORPO, fomos assistir a ativista norte-americana Deborah Peterson Small, no dia 25 de julho, dia Internacional da Mulher Negra Latina Americana e Caribenha.
Vimos uma mulher negra, forte e de muitas lutas dizer que o encontro do homem europeu branco com a população africana marcou com ferro esse processo de discriminação, que até hoje os afrodescendentes tentam se despir dessa colonização, na luta para afirmar sua própria cultura.
Finalizo com a exposição/instalação de Grada Kilomba, na Pinacoteca, São Paulo, em 2019, que muito me emocionou, Illusions, em Desobediências Poéticas. Ela começa dizendo, com uma voz calma e rítmica, mais ou menos assim: “Não vou dizer nada de novo, nada do que nós todos já não saibamos … “
Assim ela começa a contar o mito de Narciso e Eco, em que Narciso é o mito que constitui o narcisismo branco que não quer ver e Eco é aquele que repete porque não quer saber, pois o outro é negro.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
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