Observatório Psicanalítico 37/2017
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo
Chama o bombeiro!
Carmen Souto (SPBsb)
Uma notícia me chamou especial atenção este final de semana: a de um bombeiro, do Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal, que pegou, indevidamente, isto é, sem autorização, um carro de apagar incêndio da corporação (auto tanque rebocável – ATR) e saiu em direção ao Plano Piloto, em Brasília, onde ficam situadas as sedes dos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo. Segundo as matérias, tinha a intenção de jogá-lo sobre o Congresso Nacional.
Depois da primeira notícia vieram em seguida as explicações da família, dos colegas e da corporação para o fato de um bombeiro, treinado para salvar vidas, proteger patrimônios e zelar pela sobrevida de seres humanos, ter tido por instantes a intenção de atirar um de seus instrumentos de trabalho sobre o Congresso Nacional. Estas explicações eram unânimes em afirmar que ele teve um surto psicótico, devido ao excesso de trabalho e talvez ao uso de substâncias químicas.
Eu pensei cá comigo: este surto é o que todos nós brasileiros estamos em vias de ter. Mas por que será que estamos surtando e querendo atacar de forma tão agressiva as sedes dos poderes da república?
Trazendo para a psicanálise aplicada podemos dizer que o Estado liberal brasileiro atua como o representante psíquico do pai para o seu povo, intermedia as relações sociais, com a intenção de fazer a negociação de classes e assim fazer um contrato social em que todos os nacionais se sintam sob sua proteção legal. Esta intermediação é feita por meio das leis, regras, normas, decretos e tudo o mais que possa regular e contribuir para a vida cotidiana de cada indivíduo do nascimento à sua morte.
E parece que de repente este Estado-pai não oferece mais a proteção da lei aos seus cidadãos, quando juízes fazem prisões coercitivas em universidades, são parciais em seus julgamentos, promotores defendem a prisão sumária de acusados sem a devida investigação, pessoas podem ter suas casas devassadas com a devida ordem judicial apenas porque vizinhos suspeitaram de certa movimentação, a escola já não assegura mais proteção a estudantes e professores que lá estão, vez que são vítimas de balas perdidas dentro delas. Nem mesmo a barriga da mãe é mais um local seguro para os bebês, pois têm sido comuns notícias de que grávidas têm sido atravessadas por balas vindas não se sabe de onde. O útero já não é mais um local seguro e confortável.
Estamos, nós brasileiros, nos sentindo desprotegidos psiquicamente ao assistirmos a perda do Estado de Direito? Penso que sim, talvez o Estado de Direito seja o pai continente, que nos dá abrigo, proteção, alimento, sentimento de pertencimento e nos torna finalmente cidadãos. Se este Estado nos é retirado, ficamos literalmente desprotegidos, e consequentemente, psiquicamente desprotegidos como indivíduos e como cidadãos.
Aqui falo no Estado de Direito como um Estado de Proteção, como uma pele psíquica que reveste o corpo nacional e nos torna amparados e capazes de construirmos na vida comunal e formar uma nação digna. Sem ela somos jogados no labirinto da incerteza e das ansiedades persecutórias, sentidas por todos como um ataque virulento à integridade física, psíquica, social, econômica, moral, grupal, política, cidadã, dentre doutras. A forma de se proteger desses ataques internos será também atacando o perseguidor, destruindo-o. A falta do Estado de Direito retira, portanto, a continência social para se continuar a existir. Na sua ausência suponho que não há psiquismo que resista, uma vez que não há contenção. E então? Chama o Bombeiro!
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