Observatório Psicanalítico 18/2017
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
Carta ao pai que vive em mim
Cíntia Xavier de Albuquerque
Oi, pai,
Quero escrever essa carta sem pressa. A intenção é cada sílaba. Esse é meu terceiro dia dos pais sem você do lado de fora. Sem o almoço de família e sua alegria tímida, a mesma festa para cada presença e para cada presentinho.
Já fiz três aniversários sem seus festejos antecipados: “quem é que vai fazer aniversário na semana que vem?” ”… daqui a três dias?” ”… amanhã?” E eu dizia: “sua filhinha predileta.” E você morria de rir. Como a gente se divertia com nossos jogos repetidos, não? Aliás, já faz parte do jogo mesmo repetir e rir de novo e de novo. Sabe que esse seu jeito de comemorar nossa existência durante toda a semana anterior foi adotado por alguns de nós, que temos feito em seu lugar uns com os outros? A gente faz e sabe que está trazendo você para a festa. É um pouco triste e muito bom.
E aquele outro jogo, o do abraço? Quando eu te abraçava muito e você achava que já estava bom e começava a querer se desprender e eu dizia : não não não , ainda não acabeeei… e agarrava mais, você se balançando todo de rir. Quanto mais frágil você ia ficando mais tempo eu queria no abraço. Só agora pensei com essa clareza: eu sabia… mas não com consciência, pois que filha suportaria isso?… que não teria por muito tempo você de pé, os braços em volta de mim, sentindo seu cheiro e a temperatura morna. Aí nosso abraço sentou e deitou e assim ficou até o final.
Pai, uma coisa que você talvez não lembre. Cinco dias antes de você morrer você olhou pra mim como que acordando de um sonho, o olhar vivo e absolutamente surpreso e disse “minha filhinha!”. E eu, encantada, respondi “Oi, pai, há quanto tempo!”, e ajoelhei e me abracei a você na cadeira. E você pôs as mãos na minha cabeça. Eu me senti protegida e chorei. Foi uma das muitas despedidas. A última olho no olho.
Bem, meu lindo maravilhoso, aquela falta chocante dos primeiros meses, que doía até na carne, acalmou. Se transformou numa saudade muito agradecida, na saudade terna de uma filha privilegiada. É verdade que é possível não ter pai do lado de fora. Acredito que até por ter tanto pai dentro. Você. O pai que você é pra mim.
Mas, pai, mudando de assunto, a gente se divertiu muito, heim? Eu ligava e dizia “vou te pegar tal hora” e você nem sempre sabia pra que nem pra onde! Você foi um ótimo companheiro! Para alguém acostumado com as águas geralmente mansas dos rios amazônicos, ser colocado nuns veleiros adernados nas Baías de Guanabara e de Angra dos Reis, com ventos surpreendentes, assustadores… meu deus! Pai, a gente corre mesmo riscos nessa vida, é assim. Ainda bem que a gente atravessa a maioria das situações e sai do outro lado. E as serestas? Ficava me ouvindo cantar e sempre dizia: “tão afinadinha…”. Puxei a você, que cantava pra nós.
Para terminar, estou lembrando de tantas vezes em que você me ligava cedinho perguntando como estava meu dia, pedindo para dar “uma passadinha” no escritório porque queria conversar comigo sobre algum assunto. Você pensava que eu ia te ajudar , mas não imagina como isso foi fundamental pra mim. O fato de você apreciar minhas ideias, meus pensamentos, meus olhares sobre as coisas.
Sério, pai: você me salvou.
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