Cala a boca não morreu, mas #EuNãoMeCalo

Observatório Psicanalítico – 165/2020

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

Cala a boca não morreu, mas #EuNãoMeCalo

Cláudia Carneiro (SPBsb)

Vivemos o cenário de morte e horror de um mundo atingido pela pandemia do coronavírus. Esta realidade nos obriga a lidar cotidianamente com o excesso, no conceito freudiano de uma carga de estímulos exageradamente poderosa para ser elaborada em condições normais. Como se não bastasse o medo do extermínio, uma crescente ameaça invade a vida política do país e o traumático ressurge na presença do autoritarismo do presidente da República.

No país que foi inundado pelas fake news e os robôs da família Bolsonaro, a liberdade de imprensa está sendo cerceada. Paira uma permanente ameaça. Vamos a alguns fatos: 

No domingo em que se comemorou o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, jornalistas que cobriam a manifestação pró-governo em frente ao Palácio do Planalto sofreram agressões verbais e físicas. O repórter fotográfico Dida Sampaio, do jornal O Estado de São Paulo, foi jogado ao chão por apoiadores do presidente, levou socos, chutes e empurrões. Fato: O presidente Bolsonaro participava de mais um ato em defesa de pautas antidemocráticas e inconstitucionais – pedidos de fechamento do Congresso e do STF, intervenção militar. Dois dias depois, em frente ao Palácio da Alvorada e com sua claque, Bolsonaro, reagindo à notícia de interferência na Polícia Federal, chamou a imprensa de “canalha” e com dedo em riste gritou um, dois, três “cala a boca!” a jornalistas. Fato: No mesmo dia, Bolsonaro minimizou as agressões feitas à imprensa e os ataques a enfermeiras durante um protesto silencioso no 1º de maio em homenagem a profissionais de saúde que morreram vítimas do coronavírus.

O “cala a boca” de Bolsonaro lembrou tal e qual a cena do poderoso ex-chefe do SNI Newton Cruz, nos últimos anos da ditadura militar. Questionado sobre a falta de democracia no Brasil, o general agrediu ao vivo o radialista Honório Dantas com um retumbante “cala a boca”, antes de lhe dar uma chave de braço. O vídeo do episódio circulou na semana passada nas redes sociais, que também propagaram o protesto de jornalistas com a tag #EuNãoMeCalo.

A atitude do presidente é justificar as agressões e elogiar os agressores, atacar a vítima. Fontes de Brasília que privaram recentemente de alguns momentos de proximidade com o chefe do Executivo dão notícia de um homem transtornado, espumando ódio e xingamentos e sentindo-se perseguido pela humanidade. A personalidade autoritária precisa defender-se do inimigo imaginário, recorre a mecanismos paranoides e impulsividade destrutiva para atacar a imprensa, o Congresso, o STF.

Os fatos aos quais assistimos têm a gravidade de anunciar uma perigosa escalada de violência por parte dos seguidores de Jair Bolsonaro. O presidente incita a massa a desrespeitar e hostilizar a imprensa e jornalistas. Em 2019 foram 11 mil ataques por dia nas redes sociais, sete agressões a cada minuto (Abert). Os ataques protagonizados pelo presidente e a perseguição a jornalistas e às instituições garantidoras da democracia estimulam não só os criadores de fake news, mas também de seguidores fanáticos que se sentem legitimados pelas atitudes e o discurso do “mito”.

A relação do líder com a massa funcionará melhor quanto maior a identificação das pessoas com o líder comum, tosco, desprovido de bom senso. Pois a massa é acrítica, impulsiva e extremamente influenciável. A voz falaciosa do presidente torna-se certeza indiscutível. A atualidade da obra de Freud mais uma vez se faz presente, com sua Psicologia das massas e análise do eu, que em 2021 faz 100 anos.

As declarações falsas ou distorcidas, fato corriqueiro na crônica presidencial (foram 608 em 2019), revelam o objetivo do governante totalitário. Tenta desqualificar as críticas e denúncias contra seu governo. Crie um problema, coloque um bode na sala, desvie a atenção do fato que realmente importa!

Para o pavor de dois terços dos brasileiros que não apoiam o governo Bolsonaro, a democracia em nosso país parece estar por um fio. O que presenciamos não faz parte do jogo democrático. Acusar a imprensa, distorcer os fatos, mentir não é liberdade de expressão, sobretudo quando vem da pessoa que ocupa o mais alto cargo da República e incita a agressividade e a violência. Como nos lembra Freud, um germe de antipatia torna-se um ódio selvagem.

As referências a Hitler e a Stalin já frequentam desde sempre os discursos de auxiliares de Bolsonaro. A última bizarrice veio da secretária especial de Cultura, Regina Duarte, minimizando a tortura e as mortes no regime militar, num extraordinário chilique ao vivo à CNN Brasil, depois de cantarolar uma marchinha da ditadura.

Há uma permanente ameaça à liberdade de imprensa em nosso país. E não há democracia sem imprensa livre e respeitada.

Em 2015 a ministra Carmem Lúcia do STF celebrizou a expressão infantil “cala boca já morreu” ao reafirmar o direito à liberdade de expressão, no julgamento que liberou as biografias não autorizadas. Sua inesquecível frase foi abafada por um estrondoso ruído. Este reproduz ao fundo os tambores da época da ditadura e parece querer ressuscitar a censura que, com a castração dos direitos civis, a perseguição, a tortura, a morte e toda forma de violência, mergulhou nosso país no obscurantismo por longos anos de chumbo. Espantosamente, ministra, o cala a boca não morreu.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

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