As vísceras de Rubem Fonseca

Observatório Psicanalítico – 160/2020

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

 

As vísceras de Rubem Fonseca

Daniel Senos (SBPRJ)

 

No princípio era o som. Barulhos estranhos, ritmos e líquidos desenham a completude que se espalha em um sistema improvável, porém funcional. Somos gestados em meio a sons intestinais, ritmos cardíacos, vibrações de vozes, que entoam as melodias que regem a nossa história subjetiva. O vento da placenta que sopra o acalento, a esperança e o amor do par mãe-bebê. 

 

O aperto do aconchego intrauterino, o meio aquoso que se mistura à vida em formação, entregando ao bebê um enquadre onírico, no qual sua experiência em relação ao ambiente encontra-se mediada pelo continente materno. Os sons do organismo humano se articulam em uma harmonia repleta de ruídos, mas que, em conjunto, formam uma grandiosa composição que embala a vida em potencial do bebê. Tal harmonia não guarda relações diretas com a calmaria, conforme o senso comum nos forçaria a pensar. A partir de um conjunto de notas fisiológicas, o corpo materno banha o bebê com os acordes que compõem o primeiro ballet da constituição da subjetividade.

 

A nossa existência é visceral. Carregamos conosco todas essas marcas sensoriais que narram a história singular de cada um e repercutem na forma como interpretamos o mundo e nos relacionamos com o ambiente que nos cerca, com os nossos interlocutores. O tempo nos afasta de nossas experiências mais primitivas, que passam a compor uma estrutura complexa e silenciosa, que abarca a subjetividade humana e permite a ascensão dos processos simbólicos mais sofisticados. Diversas são as situações que nos impactam e demandam que sintamos com as nossas vísceras, com o que temos de mais cru e arcaico. Desde traumatismos severos até a apreciação de uma obra de arte, somos convocados a interagir com todas essas experiências que permeiam o âmago do ser.

 

Acredito que só é possível falar de uma obra literária ou de um autor a partir de nossa própria experiência. Todas essas palavras são uma tentativa, provavelmente insuficiente, de transmitir as emoções que sinto a partir da leitura da obra de Rubem Fonseca, que nos deixou recentemente.  Sua capacidade de nos colocar em contato com aspectos tão violentos e cruéis do ser humano é chocante; a crueza de seus personagens, que convive com a erudição, por vezes citada diretamente, outras vezes implícita. A violência explícita de sua prosa é cativante e, ao mesmo tempo, indigesta. Rubem Fonseca também nos apresenta aos elementos marginais da cidade, à segregação e seus destinos. As putas, os policiais, o morador de rua, os assassinos, aqueles que estão em condições sociais críticas. Todos esses elementos tão básicos do ser humano são escancarados sem pudor pelo autor, colocando o leitor em um estado mental aturdido, confuso, e, por vezes, estupefato perante o mundo hostil e demasiado humano descrito por Rubem Fonseca. Revisitamos, a partir de sua leitura, nossas próprias angústias primordiais, aquelas que nos devolvem às nossas vísceras, às marcas corporais tão precoces, que permitem que experimentemos estados primitivos, suportemos o horror narrado por ele, e, estranhamente, reconheçamos uma série de elementos de seus personagens em nós mesmos.

 

Rubem Fonseca talvez seja um dos autores contemporâneos que se aproximaram em descrever fantasias tão fundamentais do ser humano. Lembro das descrições de Melanie Klein sobre suas observações em relação ao mundo interno do bebê. Assim como Rubem Fonseca, Klein também descreve fantasias arcaicas que permeiam o psiquismo, assim como a pluralidade de angústias e defesas que se apresentam de forma muito precoce na vida do bebê. São fantasias sádicas, que envolvem vingança, inveja, destruição e agressividade, em articulação com a base sexual infantil descrita por Freud anteriormente como o pano de fundo essencial do encontro do sujeito com o outro. Sem a pretensão de propor uma equivalência entre o brasileiro e a austríaca, acredito que ambos se esforçaram para tentar narrar experiências primitivas que permeiam a existência humana e que insistem em se manifestar.

 

Rubem Fonseca escreveu para as nossas vísceras, para o que há de mais sórdido e escondido em nossa subjetividade. A necessidade constante de revisitarmos os nossos próprios enquadres oníricos é constante, uma vez que sentimos que seu texto toca em elementos fundamentais da humanidade. Buscamos aconchego naqueles sons primordiais do corpo materno e na contenção intrauterina que guardamos de lembrança em nossa pele. Porém, não saímos intactos. Rubem Fonseca nos rouba, aos poucos e de forma impiedosa, a fantasia de que somos melhores ou maiores. Somos todos vísceras e emoções.

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

 

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