Observatório Psicanalítico – 181/2020
Observatório Psicanalítico – 181/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do Mundo.
Arte, literatura e a criação do amanhã
Ana Valeska Maia Magalhães (SPFor)
Nunca esqueci a apresentação do livro “Primeiras Estórias”, feita por Alberto da Costa e Silva. O texto abriu, em mim, duas estradas. A primeira revolveu a terra no percurso do caminho, facilitando a absorção de nutrientes para a recepção da escrita de Guimarães Rosa. A segunda estrada foi a de um encantamento diante de um leitor afetado pela obra. Naquele momento ficou nítido que, sem o vigor de um pathos encantatório, seria somente técnica. Seria pobre. Alberto da Costa e Silva injeta vida em cada frase da apresentação do livro. As “Primeiras Estórias” estão entranhadas nele. Manifestam-se como algo forte e vivo que une morada arraigada e a poesia vicejante dos começos. Como o entusiasmo que sentimos ao ver o mundo como novidade. Como a emoção que nos toma ao caminharmos em uma cidade que há muito tempo desejávamos conhecer.
No encontro com a arte há o risco do confronto, do que vemos nos olhar de volta. Lembro-me de ficar mareada quando vi uma pintura de Turner. Depois descobri que o artista era amarrado ao mastro do navio e lançado ao mar bravio, para pintar a fúria que ninguém tinha pintado antes dele.
A intensidade da obra trouxe uma emoção que senti como instabilidade, perda do controle, incerteza. Como Freud, desnorteado diante da escultura do Moisés de Michelangelo, experimentando a inquietude de procurar palavras para expressar o que se tem diante dos olhos e não encontrar. Talvez seja nesse vão aberto pela incerteza que a força da arte entre. Nesse algo que abala a nossa ilusão de controle, que fere a firmeza de nossas âncoras narcísicas.
Quando Alberto da Costa e Silva nasceu, em 1931, o Brasil era impregnado pela tese do branqueamento. Ele, ao tornar-se diplomata, realizou inúmeras viagens ao continente africano, foi embaixador no Benin e na Nigéria, depois precursor nos estudos e publicações sobre a África no Brasil. Uma trajetória que tem a marca de um impacto. Ao chegar na África, foi recebido por um comitê de boas-vindas festivo. O colorido das vestes, em sedas e damascos, cantos, danças, falas em voz alta. As risadas. Tudo tinha cor e ritmo. A África que ele enxergava era diferente da que era narrada nos livros da época. Diante daquele derramamento farto de pulsão de vida, ele se viu feíssimo, com seu terno cinza. Percebeu que era preciso contar a história da África aos brasileiros. A história sobre as nossas origens. A história que ainda não tinha sido contada sobre quem somos nós.
O escritor José Eduardo Agualusa costuma dizer que a literatura aproxima as pessoas, que nos coloca no lugar do outro. Reiterou essa afirmação no recente “IPA Webinar: Covid-19 Como criaremos o amanhã?” Ao escutar Agualusa, fui levada à fala de outro escritor: David Grossman diz que a literatura é o contrário da guerra. Numa guerra você precisa obliterar a face do inimigo, você precisa deixar de percebê-lo como um ser humano. Na literatura, ao contrário, o escritor, ao criar personagens, precisa entendê-los em sua profundidade e de forma multifacetada. A literatura é também uma construção que possibilita falar verdades que não podem ser ditas fora da escrita literária.
O que é necessário para criarmos o amanhã que queremos? Será que precisamos de novas modalidades de espantos para que venham novas perguntas? Estamos na era das incertezas. Pandemia, crise política, crise social, crise ambiental. Estamos no presente ou ficamos presos numa esfera do passado? Certamente o futuro não será mais o que era, já disse Paul Valéry e Renato Russo ajudou a propagar. Se os dirigentes que temos são representantes do passado, como disse Agualusa no mesmo Webinar, como criar o amanhã?
Com a arte. Com a ficção literária. Com a renovação da capacidade de sonhar, respondem Agualusa e Ney Marinho no Webinar. As apostas feitas na arte para a construção do amanhã trazem dois lugares para pensar: o do artista/escritor e o do leitor/espectador. E com esses lugares postos surge mais uma pergunta: como é a nossa relação com o que recebemos como leitores/espectadores? Desde Duchamp, a arte tem muito mais uma relação com a abertura de ideias e campos criativos do que com obras expostas num museu ou galeria. Tem mais relação com a possibilidade de confronto com as noções fixas de mundo e a elaboração de outros possíveis. Muito da arte no século passado constituiu-se numa espécie de inquietude convocatória libertária, instigando a saída de um lugar passivo em direção a um lugar ativo e criativo, como fez Lygia Clark com os Bichos, como fez Helio Oiticica com os Parangolés.
Conseguiremos esse exercício de liberdade? Deixamo-nos afetar no contato com a arte? Sempre chamou a minha atenção a forma sentenciosa de aplicação de conceitos que muitos psicanalistas fazem ao proporem pensar a arte relacionada à psicanálise. Esse incômodo surge como tema no livro “O ouvido do analista e o olho do crítico”, escrito pelo psicanalista Thomas Ogden e por seu filho, Benjamin Ogden, que é crítico literário. Os autores partem da constatação de que é comum os psicanalistas utilizarem conceitos psicanalíticos para explicar um texto de literatura de maneira fria e estereotipada. Interpretando personagens, seguindo o que diz a teoria. Ogden ressalta que, ao agirem assim, perdem o viço do que há de essencial, belo e criativo no contato com a arte. Sugere que um caminho mais fértil está em algo presente no trabalho da clínica psicanalítica: a sensibilidade aguçada para as emoções, para a revitalização das palavras, a linguagem como um meio de experimentação de mundos novos.
O artista Tunga costumava dizer que fazer arte significava juntar coisas e, ao juntá-las, encontrar coisas que nos surpreendam. Deixar margens para o susto. Para vir a pergunta no entremeio dessa emoção misteriosa que brota ao ligar uma coisa na outra.
É importante também deixar que sejam livres as palavras, para celebrarem novos arranjos, ritmos, músicas, trazendo junto versos de verdade. Como em Guimarães Rosa. Há perda, dor, desamparo, mas há poesia. Aquela poesia delicada que cobre o banal dos dias. Os rios e suas terceiras margens. O grande sertão no qual a gente se prende, se perde, se solta.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
Imagem: Vapor numa tempestade de neve. 1842. Joseph Mallord Wiliam Turner. Óleo sobre tela. 91,5 x 122 cm. Tate Gallery, Londres.
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