Observatório Psicanalítico – 82/2018
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
A psicanálise em tempos de pós-verdade
Renata Zambonelli Nogueira (SBPSP)
Em “A perda da realidade na neurose e na psicose” Freud descreve a ocorrência de um constante jogo de forças no interior do psiquismo que, por diferentes mecanismos, pode nos levar a abandonar os dados que o aparelho perceptivo nos oferece a respeito da realidade. No mesmo texto ele se arrisca brevemente a idealizar um comportamento “sadio”: tal como a neurose, nega um pouco a realidade; ao mesmo tempo, empenha-se em alterá-la, aproximando da psicose. Mas em lugar de substituir a realidade pela fantasia, efetua um trabalho no mundo exterior.
Recuperar essa descrição é importante em um contexto em que neologismos como “pós-verdade” e “autoverdade” passam a integrar a linguagem corrente para nomear fenômenos constatados na cultura contemporânea.
Segundo a jornalista Eliane Brum chama-se pós-verdade um cenário em que os fatos objetivos passam a ter menos influência em moldar a opinião pública do que crenças pessoais e apelos à emoção; e autoverdade, quando determinadas verdades pessoais ou autoproclamadas passam a adquirir valor de realidade se ditas de forma eloquente e aparentando autenticidade. Brum traduz esse fenômeno como a decodificação da estética como ética: o importante é como se fala, e não a existência de qualquer verdade no conteúdo daquilo que se fala.
Nesse universo, fake-news, montagens e textos de WhatsApp de autoria completamente anônima (o que parece não importar àqueles que os disseminam) podem ser eleitos como únicas fontes de informação por uma grande quantidade de pessoas, em detrimento da informação apurada pelo jornalismo profissional que, por vezes, é tomada como mentirosa.
Embora essa problemática não esteja situada estritamente no campo da política, as campanhas eleitorais de Donald Trump e Jair Bolsonaro os levaram a um protagonismo como representantes da autoverdade. Me explico: políticos sempre mentiram ao povo, mas há uma diferença fundamental entre o político que mente sobre o seu projeto, respeitando as regras do jogo democrático e suas instituições e aquele que trabalha com a mentira para a implosão das instituições que sustentam o pacto político-democrático, sabotando sua credibilidade, para que reste apenas a sua própria verdade como merecedora de confiança.
As campanhas de que estamos falando optaram pela comunicação direta com seus eleitores dispensando a mediação da imprensa e se utilizaram de estratégias de inserção bastante engenhosas. Cito algumas delas: a criação de grupos de afinidade nas redes sociais, em que mensagens são enviadas conforme os interesses do receptor, facilitando uma receptividade empática aos conteúdos que passam a circular; o método “firehosing” que se traduz por apagar um incêndio apontando uma mangueira com grande intensidade de água – metáfora para o disparo de um imenso volume de mensagens por diferentes canais, em ritmo rápido, contínuo e repetitivo, com o objetivo de produzir credibilidade; e, mais especificamente no caso brasileiro, a aposta na disseminação de falsas narrativas que apelam à moralidade sexual.
Foi por essa via que se disseminou entre milhões de eleitores a certeza inquebrantável de que Fernando Haddad havia distribuído material pornográfico para crianças nas escolas, e que se instalou no Brasil um clima de desconfiança a respeito do sistema de urnas eletrônicas, a despeito dos esforços do TSE e do jornalismo em apresentar contraposições.
Como psicanalistas do nosso tempo seríamos capazes de alguma compreensão sobre as forças implicadas nesse fenômeno coletivo de abandono da realidade?
Me parece fácil enxergarmos na cultura uns tantos elementos da ordem das paixões e da moralidade suficientemente capazes de solapar o compromisso do Eu com a realidade e colocá-lo a serviço do Id: o desejo por um pai forte, protetor e interditor, que nos proteja da nossa própria sexualidade; o ódio ao PT – transformado em objeto mau, à moda esquizo-paranóide mais prosaica; o ódio às múltiplas sexualidades que conquistaram espaço dentro de um governo progressista; o ódio às mulheres e às suas conquistas de direito sobre o próprio corpo; o racismo escravocrata e o ódio de classe, vinculados ao desejo de dominação do corpo do outro; a injúria introjetada e a identificação com o opressor, etc.
Quanto a tudo isso que continuemos sendo analistas!
No entanto, um elemento novo desse contexto de crise das comunicações me parece nos convocar a incluir um olhar adicional à contemporaneidade e à própria clínica: nesse terreno pantanoso da mentira, não nos caberia estarmos atentos sobre em que tipo de dados de realidade nossos pacientes apoiam suas reflexões? Ou ainda, em que fontes nós mesmos, analistas, nos apoiamos?
Em seu artigo sobre a análise de um paciente que mentia compulsivamente, “O mentiroso”, Bollas nos conta como passou de um analista que era visto por seu analisando como alguém firmemente situado na realidade, capaz de libertá-lo de sua loucura, para um analista em estado confusional, incapaz de discriminar realidade e fantasia, quando o mentir do paciente se atualizou na transferência.
Será uma função do psicanalista do nosso tempo tecer novamente um pacto ético com a ideia de verdade?
PS. Quando a escrita desse texto chegava ao fim, passaram a surgir notícias de que a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de São Paulo, autora da reportagem sobre a divulgação de mensagens pelo WhatsApp financiada por empresários durante a campanha eleitoral a favor de Bolsonaro, que já fora ameaçada, passou a ser vítima de ataques nas redes sociais através de fake-news. Ela postou em seu Twitter: “dá vontade de desistir”.
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