A pandemia e a perda dos espaços: o público e o íntimo

Observatório Psicanalítico – 185/2020

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do Mundo.

 

A pandemia e a perda dos espaços: o público e o íntimo

Ricardo Trapé Trinca (SBPSP)

 

Quanto mais o tempo passa, mais distante ficamos de um mundo que se foi. E mais próximos também de um mundo que, se porventura existiu, se apresenta agora na forma de um grande palimpsesto de memórias. Perduramos em nossas casas, pressionados pelo desejo dos encontros, dos abraços, dos rostos conhecidos e seus sorrisos (ou de seus cenhos franzidos). Esse desejo impinge uma dor contínua e não claramente localizável;  uma dor de tudo o que não temos mais. Arrisco dizer que é uma dor de ausências, tanto daquelas que sentimos por conta do que não chegamos a viver, como das visibilidades da nossa memória. Perduramos em nossas casas disciplinando esse desejo, um desejo por suprimir essas dores de ausências. Temos, é certo, a vida das experiências do presente. Mas esse mundo presente, perturbador, afronta-nos com sua realidade impactante. 

 

Gravitamos em torno do que não se deixa capturar com facilidade e não encontra ainda meios de resolução. Lemos as notícias, escutamos os colegas, participamos de webinars, procuramos figurações atuais oriundas de palavras vivas, que tragam algum frescor. Algumas dessas figurações ajudam-nos a apreender a realidade por meio de sentimentos de medo. E assim constituímos verdadeiras paisagens de medos, que pouco a pouco são mapeadas como uma cartografia, com seus monstros marinhos e imprecisões sobre regiões remotas. Nossas cartografias atuais, no entanto, menos fantasiosas, atravessam dimensões da morte, do adoecimento, da perda da liberdade e da estranheza sobre o corpo humano – principalmente sobre o rosto, agora encoberto e mascarado. Incluímos em nossa cartografia a emergência climática, as políticas de violência do governo e da sociedade, a aniquilação em curso da biodiversidade e o adoecimento coletivo dos organismos. A eles, soma-se a pandemia e o distanciamento social, como assombros contínuos e insistentes. A força desses assombros esgota nossos dias, diante dos quais permanecemos circulando em torno de um centro vazio traumatizante, um vazio gravitacional.

 

Na pandemia, um novo rosto nos assombra com uma estranha vestimenta, que oculta a nudez das expressões errantes, naturais, que surgem na comunicação. A apreensão visual e acústica da emoção, presente nos detalhes dos contorcionismos da face, com suas expressões musculares delicadas, e dos timbres melódicos da voz, com sua prosódia e sonoridade, tornou-se obscurecida. Rapidamente, as pessoas passaram a não mais se olhar, os corpos que permanecem distantes uns dos outros passaram a sentir o temor da perigosa proximidade. Um encontro humano mascarado, em que as emoções são compreendidas por meio das partes que sobram de expressões encobertas, inspiram profundas fraturas éticas, como de pessoas vulneráveis e invisíveis socialmente. O sujeito precisa do rosto do outro para vislumbrar algo que é seu. Pois o rosto do outro permanece como aquele primeiro e fundamental espelho. A ausência do rosto é perturbadora.

 

A pandemia, assim, nos devolve  para o antigo interior da casa. Pois nela, esse lugar de recesso seguro, no qual as máscaras são guardadas em algum lugar, o encontro humano vai permanecendo desnudado. A casa também se constitui por espaços repletos de objetos mudos ou destinados a falar por meio do colorido da nossa subjetividade, e também como espelhos. Esse espaço não é nem especialmente íntimo e nem especialmente público. Ele guarda esse movimento pendular contínuo e necessário por meio de suas portas. 

 

Uma sala de estar pode transformar-se em um espaço íntimo com um cobertor sobre o sofá, com os óculos, o tabaco ou os sapatos esquecidos num canto qualquer.Mas ser também um espaço frio, abandonado e apenas destinado às eventuais visitas. As portas abertas de uma casa podem torná-la receptiva, mas também impossibilitarem acontecimentos íntimos. Nas sessões remotas observamos inevitavelmente traços desses registros do interior da casa de nossos pacientes. Uma estante repleta de objetos eletrônicos esquecidos, uma parede com inúmeros desenhos coloridos de crianças ou uma sala extremamente clara e vazia, repleta de sons que vem do entorno. Mas são vislumbres breves, do tempo de uma sessão. São nossos novos settings, que participam dos esforços para constituição de novas e possíveis intimidades.

 

Na casa, a convivência diária, de horas e horas a fio, em espaços reduzidos, parece comprometer a própria pessoalidade. Ela pode se tornar sufocada, comprimida. Uma possibilidade é que a intimidade necessite de sua contraparte pública, como seu necessário oposto. Pois como obteríamos a intimidade a não ser por meio dos caminhos que nos levam para dentro, pelos caminhos dos corredores, dos trajetos, e das ligações associativas – muitas vezes conduzidas por aquelas palavras certeiras e exitosas que ligam imagens, palavras e emoções? Não temos subestimado a importância dos caminhos públicos, das distâncias, dos trajetos, valorizando excessivamente o interior? Acaso não se chega para uma sessão de análise por meio de ruas, avenidas e corredores? A intimidade também parece ocorrer pelo desejo do reencontro com registros psíquicos importantes e muitas vezes esquecidos. Mas são reencontros, cuja temporalidade e espacialidade não pode ser subestimada. 

 

Tenho escutado narrativas simples – que se tornaram mais frequentes – sobre reorganizações da casa e de encontros com objetos líricos, que produzem lembranças de histórias e de emoções esquecidas. Um álbum de família, um brinquedo antigo, um relógio quebrado e muito usado, uma peça de roupa de alguém que partiu: todos esses objetos são portas abertas para longos corredores que nos conduzem para emoções íntimas. Eles são recuperados e depois novamente guardados. 

 

A intimidade, em sua dialógica, suspende o público enquanto se examina, encontrando emoções que quer sentir e compreender. Mas não se prolonga indefinidamente e carece de alguma interrupção. Ela quer sair de si, buscar o outro, publicar suas descobertas. A intimidade escolhe com quem dividir aquilo que é descoberto. O íntimo, por isso, é um polo magnético: ele atrai, tanto quanto repele.

 

Passo de carro por Moema no sábado à tarde. Inúmeras pessoas convivem sem máscaras em frente a um bar. São jovens adultos que tomam suas cervejas. Seria um típico sábado à tarde, não estivéssemos em tempos de pandemia. A cena causa familiaridade, mas também inspira estados de dissociação. Leio notícias de cenas parecidas em outras cidades ao redor do mundo. O vírus é invisível. Como pode ser difícil para uma população conviver com um inimigo que não tem face, que não tem nenhuma representação, nenhuma aparência. As máscaras em desuso revelam que o desejo pelo passado, associado com a invisibilidade do vírus, parece estimular a cegueira; o passado conhecido quer ser recuperado, o presente perturbador tende a ser recusado.

 

Na aparente alegria das pessoas na rua, pressinto que o traumático ronde como uma dimensão inevitável. Não apenas porque podem – ou não – contrair o vírus, mas porque o presente continua a assombrar, demandando continuamente esforços de elaboração e produção de narrativas. Talvez essas narrativas precisem  incluir a perda do espaço público outrora conhecido, como narrativas cartográficas que incluam os novos medos, de coisas invisíveis.

 

Precisamos esquecer para lembrar, mas certas vezes não conseguimos, e, então, não sonhamos. Não conseguimos esquecer do que nos atordoa e violenta. Os caminhos para elaboração de traumas coletivos estão associados à lembrança das histórias e das experiências particulares, principalmente para que não sejam transmitidas para outras gerações. Mas para lembrar das histórias elas precisam ser sonhadas. Para isso, precisamos primeiramente criar narrativas autorais de nós mesmos e daqueles que amamos, incluindo a possibilidade de sofrer o que for preciso. Assim, a psicanálise ressurge nesse início da segunda década de nosso século como um espaço imprescindível de escuta para a elaboração de traumas coletivos, mesmo que eles aparentem ser, na experiência clínica cotidiana, como eminentemente pessoais. 

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

 

Imagem: Pintura “Interior”, Anna Ancher. 

 

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