A medicalização na infância e na adolescência.

Observatório Psicanalítico – 117/2019

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

 

A medicalização na infância e na adolescência

Alícia Beatriz Dorado de Lisondo (Gep Campinas/SBPSP)

 

A clínica de bebês, crianças e adolescentes (B.C.A.) exige do psicanalista um árduo trabalho interdisciplinar. Por tanto, é preciso discriminar a medicação da medicalização. A primeira nasce de uma verdadeira postura científica, pode ser necessária e oportuna. 

A “medicalização indefinida” (Foucault, 1970), caracteriza-se por uma extrapolação da ciência médica à vida como um todo, um abuso arrogante do biopoder, que pretende reduzir as dores da alma em formação e o sofrimento dos que exercem funções parentais à um positivismo cruel. Ante os enigmas, as incertezas, o desconhecimento que o pathos humano apresenta, aparece a droga salvadora, milagrosa e com ela a falsa promessa de cura que perturba os processos de subjetivação. Uma verdadeira indústria da medicina pediátrica (Solomon, 2012). Há remédio que cure Estados Autísticos, quando sabemos, tendo em conta a teoria da complexidade, que estes transtornos são multifatoriais numa mente multidimensional? 

É preciso admitir com humildade o desconhecido, as incertezas, aquilo que precisa ainda ser investigado na singularidade de cada paciente e cada família.

Criaturas desatentas, desinteressadas, com dificuldades de aprendizado, repetentes crônicos, alunos “problema”, hiperativos, eram outrora desafios para o educador. A primeira questão era indagar que seria possível fazer por esse aluno em formação, na escola. O investimento do professor era crucial para poder propiciar mudanças.
Claro que encaminhamentos eram, às vezes, necessários. Sem dúvida a ciência avança, mas além das novas descobertas, há “doenças criadas” pela mídia nesta era pós-moderna. Uma das consequências é potencializar o uso abusivo de drogas, e outras medicações tendo em conta os interesses do mercado consumista num círculo perverso.
Tomo como exemplo paradigmático o metilfenidato, princípio ativo que dá nome aos psicoestimulantes: Ritalina, Concerta, Venvanse. A prescrição destas drogas está tão banalizada que até professores induzem os pais a buscar a receita mágica, na busca rápida de respostas ante os “Problemas do Aprendizado”.

Hoje a RITALINA, medicamento indicado para tratar transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), principalmente em crianças e adolescentes, cresceu no Brasil 775% nos últimos 10 anos.

A hiperatividade, assim como o déficit de atenção, são berros de um ser em sofrimento.

Freud foi capaz de escutar a polissemia dos transtornos e sintomas psíquicos, reivindicando uma epistemologia profunda a partir da existência do inconsciente. Reduzir a dor psíquica ao funcionamento neurológico é um grave erro epistemológico. Além dos achados no cérebro, um aluno pode apresentar uma vulnerabilidade e fragilidade na constituição de sua subjetividade, que não permitem que seu ego seja capaz de prestar atenção e se concentrar numa tarefa.

A função parental quando é capaz se sustentar um olhar psíquico, uma escuta sensível, o holding e a rêverie, nutre a experiência de uma atenção compartilhada na mutualidade da relação. Destaco que quando a relação mãe/ bebê/família é suficientemente boa e o bebê é bem-dotado, o infans busca, foca, fica atento e extasiado, prende-se ao belo seio pensante, inspirador, nutrício estético – como no quadro de Picasso, Maternité, que ilustra este texto; nele, o bebê além de mamar ao seio, segurado pelos braços maternos, com a outra mãozinha aferra-se ao outro seio, ele encontra-se refletido nos olhos de sua mãe, num espelho vivo. 

Uma polifonia de sentidos orquestra a experiência. Esta criatura privilegiada, saboreia o leite, cheira seu perfume, escuta o ritmo cardíaco de sua mãe, como outrora dentro de seu ventre, a pulsação da mamada e da deglutição compõem uma terna melodia. Ele sente o calor e perfume do conhecido e familiar corpo materno. Esta mãe extasiada, encantada, apaixonada, com a majestade, seu bebê; permite que o filho seja promotor de alegria, num vinculo inédito. Ela apresenta o pai e é mensageira do mundo e da cultura que valem a pena serem conhecidos.

Nessa relação primordial, misteriosa, sublime, transcendental, a mente é construída. Uma alfabetização emocional, em múltiplas experiências, propicia o aprendizado atento. Só pode estar atento àquilo que lhe é apresentado, quem viveu a experiência reiterada da atenção qualificada dos objetos primordiais na primeira infância. O bebê é um filosofo em potência e um científico que explora, toca, cheira, o corpo materno, primeira fonte de curiosidade, para logo se lançar engatinhando ao mundo, para descobrir o interior de gavetas, potes, buracos, fissuras, continentes que representam a esse SER sagrado: a mãe. O vinculo de conhecimento e a curiosidade nascem na relação mãe-bebê-família.

Por sua vez, quando o bebê não conquista uma segurança básica, pela introjeção paulatina das funções mentais oferecidas pelo mundo mental parental, o bebê inquieto, sem sossego, ansioso, em mal-estar permanente, com insônia, refluxo, vômitos reiterados – com ou sem diagnóstico orgânico – pode estar buscando um continente compreensivo, que module e transforme seus terrores. A hiperatividade, numa linguagem pré-verbal, suplica, busca e anela um lugar psíquico na mente de um OUTRO capaz de desintoxicar essas agonias primitivas. Uma PROCURA de acolhimento e compreensão.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

 

 

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