Observatório Psicanalítico – 199/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
A fumaça do fogo pantaneiro
Paulo Marcio Bacha (SPMS, SPRJ)
Para a psicanálise, temos sempre a condição de ter uma mente como lugar dos pensamentos e para estes serem pensados. A capacidade de tolerar e sentir a dor da ausência do objeto propicia a sua imagem. Daí vem a necessidade de aprender a tolerar “a mudança catastrófica”, que, para Bion, é uma experiência emocional, vivida como breakup (erupção), breakdown (colapso), breakthrough (intromissão) ou como breakin (implosão). Continuando nos ensinamentos de Bion e Meltzer, é fundamental que o psiquismo suporte a mudança catastrófica, que está implícita no conceito kleiniano de “posição depressiva”.
O seio como objeto parcial combinado foi concebido por Klein. Por sua vez, o “objeto total combinado” comparece em dicotomias: os pais internos homem e mulher, em conjunção, fonte de confiança e desconfiança, devido ao interior desconhecido e não cognoscível da mãe. A urgência em conhecer e a possibilidade de pôr em movimento a formação simbólica dependem da estabilidade da posição depressiva, com a implícita capacidade de suportar a inveja e a destrutividade. A urgência epistemofílica, a investigação de caminhos do científico e do artístico, leva ao conhecer: o científico explorando o interior do objeto pela imaginação e o artístico vindo do interior do objeto, para conservar a vitalidade das emoções turbulentas, evitando a automutilação e preservando a tolerância.
Em “A aquisição e o controle do fogo”, de 1932, Freud comenta a seguinte nota de rodapé de “O Mal estar na civilização” (1930): “É como se o homem primitivo estivesse habituado, ao se deparar com o fogo, a satisfazer nele um prazer infantil, apagando-o com seu jato de urina.(…) Quem primeiro renunciou a este prazer, poupando o fogo, pôde levá-lo consigo e colocá-lo à seu serviço.(…) Essa grande conquista pulsional seria então o prêmio por uma renúncia instintual”.
Prometeu trouxe o fogo aos homens escondendo-o num pau oco: um caule de funcho. Adquirir controle do fogo (elemento que foi roubado aos deuses) pressupõe renúncia instintual. No entanto, a coerção em renunciar ao instinto desperta agressividade. E dominar o fogo não pode gerar sentimentos de onipotência?
Freud hipotetiza que, para adquirir controle sobre o fogo, o homem teve de renunciar ao desejo de apagá-lo com um jato de urina. A maneira como Prometeu transportou o fogo roubado dos deuses – escondido no interior de um “pau oco” – instigou Freud a afirmar que aquilo que o homem contém em seu tubo-pênis não é o fogo, mas o que serve para apagá-lo: água, urina. O fogo é análogo à paixão do amor, um símbolo da libido: “Quando falamos do ‘fogo devorador’ do amor ou das chamas que ‘lambem’, não nos distanciamos do modo de pensar de nossos ancestrais primitivos” (Freud, 1932, p. 230).
Freud demarca uma partição essencial, representada pelas duas funções do pênis (duplicidade esta, segundo ele, experimentada pelo homem com evidente desagrado): serve para o esvaziamento da bexiga e para o ato de amor, que satisfaz o desejo da libido genital. Destaca, porém, que esses dois atos são mutuamente inconciliáveis, tal como são incompatíveis o fogo e a água. Com o pênis excitado (Freud o compara a um pássaro) experimentando sensações que sugerem o calor do fogo, a micção é impossível. Quando está eliminando urina (a água do corpo), suas conexões com a função genital parecem se extinguir. Esta é a condição do fértil e do infértil no ato germinativo. A relação se torna um encontro quando é possível encontrar a parte de um “objeto perdido”, o que permitirá uma relação de acolhimento ou de enternecimento.
Atualmente outras dicotomias têm se tornado pautas do cotidiano: Estado mínimo ou Estado de bem-estar social? Controle democrático da política econômica ou liberdade de ação para empresas transnacionais em um mercado oligopolizado? Estímulo à industrialização nacional ou abertura do mercado interno a produtos estrangeiros? Juros altos para beneficiar o setor financeiro ou juros baixos para dinamizar o investimento produtivo, a industrialização, o emprego e o mercado interno? Política tributária regressiva ou distributiva? Controle da evasão fiscal ou leniência com os sonegadores? Quando a guerra é de narrativas polarizadas, cabe nos indagarmos se as dicotomias são reais ou falsas: cisões na maneira de nos representarmos.
Podemos pensar a partir daí a situação das queimadas no Pantanal. É o fogo em si o responsável pela destruição do bioma pantaneiro?
O governo mato-grossense informou que cinco perícias no Pantanal apontam ação humana como causa de queimadas/incêndios. Em Mato Grosso do Sul, o cancelamento de multas liberou o desmatamento desde 2017. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais demonstra que os incêndios cresceram mais de 220% neste ano. A Delegacia de Meio Ambiente informa não ser ainda possível concluir se houve intencionalidade nas queimadas. A presidência do país relata haver “críticas desproporcionais” sobre o Pantanal e a Amazônia em chamas, uma vez que “Pega fogo, né? O índio taca fogo, o caboclo, tem a geração espontânea”, além da “temperatura média de 43 graus”.
Mas o fogo no Pantanal sempre existiu, como refere o neto pantaneiro, homônimo de Manoel de Barros, em comunicação:
“Vou defender o fogo. Sim, defender. Apesar de ser contra. Inclusive tenho porteiras abertas à disposição de fiscalização. Pois não coloco fogo e nem tive nas minhas terras fogo nem por acidente. O medo de multas faz nos precaver de todas maneiras possíveis. Se tivesse tido, teria combatido com todas as forças. Infelizmente para enfraquecimento do solo e degradação dos Campos o fogo é prejudicial. Mas como disse, vou defendê-lo. Vou defendê-lo por gratidão. Por tudo que já fez por nós, pantaneiros. Pantaneiros digo daqueles que se dizem donos da terra e que trabalham nela. Só assim comungam dos meus ideais. Portanto apesar de restarem poucos, no passado foram muitos. Hoje havendo realmente mudanças climáticas, os incêndios serão mais intensos a cada ano. Sabe-se que desde 1900 o Pantanal tem passado por ciclos longos de cheia e de seca. […] O maior ciclo de seca registrado no Pantanal foi de dez anos consecutivos de seca [1964 a 1973]. […] O atual ciclo de cheia já durou mais que 40 anos, um novo ciclo recomeça exigindo capacidade e competência para que possamos sustentar e tolerar este novo tempo.”.
Assim, pode-se mijar nas cinzas para apagar o fogo imaginário, visando levar-nos à impotência pela banalização do crime – dada a ciência de que a chama que nos queima também traz o temido perigo de nos iluminar e evidenciar as sombras exigindo as várias mudanças necessárias, o ambiente se transforma.
Através das cinzas, podemos ter alguns caminhos para encontrar as respostas sobre o que aconteceu e como talvez evitar a repetição onde todos morremos com a perda da natureza preservada por tanto tempo.
Hoje se vê a crise criada por um modo de produção que invadiu a região quebrando as práticas das tradições, ainda não oferecendo na sua ação do enfrentamento do fogo medidas coerentes na política ao encontro dessa realidade da crise climática atual. O Estado, que foi vivido durante muitos anos como o guardião de tudo e todos, há tempo não existe mais, pelo contrário.
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