Observatório Psicanalítico – 191/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
A fome tem cor
Daniela Paione Mota (SBPMG)
No dia 31 de julho de 2020, Milton Nascimento se apresentou ao lado das cantoras Liniker e Xênia França, em uma live belíssima, em parceria com a ONG Ação da Cidadania (contra a Fome, a Miséria e pela Vida). O objetivo foi arrecadar fundos para doar pelo menos dois milhões de refeições para famílias brasileiras em situação de vulnerabilidade social até o final deste ano.
A união de tais artistas para arrecadar recursos em favor dessa causa é muito significativa. Milton Nascimento é um dos mais importantes artistas da música popular brasileira e do movimento musical/cultural “Clube da Esquina”, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Xênia França é cantora e compositora; Liniker, cantora, compositora e mulher trans.
Bituca, célebre artista, consagrado e reconhecido, usa de sua imagem e influência junto a novas artistas negras, impondo legitimidade à causa que pretende divulgar e denunciando o que não é dito – a cor da fome no Brasil.
Sabe-se que a pandemia do Covid-19 aprofundou o abismo de nossas desigualdades, onde a maioria das pessoas pobres são também negras, como os artistas da live.
Quem passa fome no Brasil hoje?
Pessoas pretas e pardas são a maioria da população desempregada e/ou ocupando trabalhos informais; ao executar essas atividades informais, o trabalhador está exposto ao Covid, a condições de trabalho nocivas e a baixíssimos salários.
O motoboy Paulo Lima, o “Galo”, como é conhecido, lidera o Movimento dos Entregadores, que luta por melhores condições de trabalho para a classe. Desabafou, em vídeo que viralizou na internet, revelando o que os entregadores chegam a passar: “sabe o quanto é tortura, um motoboy com fome ter que carregar comida nas costas?”.
Várias pesquisas apontam que a mortalidade por Covid-19 é muito mais alta na parcela negra da população. O abismo social amplifica a mortalidade, o que mata no Brasil é a desigualdade social.
Em atividade da Diretoria de Comunidade e Cultura da SBPMG, visitamos o Quilombo Cachoeira dos Forros, na cidade mineira Passa Tempo. O que faz o psicanalista no quilombo? Ouvir e aprender. Ouvir a história marcada por luta e resistência, a riqueza da subjetividade daquelas pessoas, “(…) porque precisamos de psicanalistas que conheçam profundamente o universo simbólico das classes populares, que tenham sido criados e/ou que vivam nas periferias das metrópoles brasileiras, onde vivem, afinal, a maior parte da população. Enquanto os psicanalistas forem majoritariamente das classes médias e altas, nossos esforços serão muito limitados.” (Fernandes, M. e Alves Lima, R., 2019)
Conhecer o universo simbólico, a cultura e as dificuldades de pessoas com vivências singulares distantes das nossas, amplia nossa capacidade de compreender a dor, a vida psíquica, as peculiaridades. A fome está na periferia. As desigualdades sociais têm barreiras que as invisibilizam. A fome não chega em nossos consultórios.
Antes da pandemia, em 2019, o IBGE já apontava 13,5 milhões de brasileiros na faixa da extrema pobreza.
“Uma gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas aguenta.”
O que pode o psicanalista diante da fome, da miséria, da desigualdade?
Milton Nascimento empresta sua voz, sua arte, para imprimir relevância e visibilidade à causa do racismo e da fome. Várias manifestações mundo afora, inclusive dentro das nossas instituições, onde antes não se discutia o preconceito, a fome, a miséria, estão escancarando as desigualdades. O não dito está sendo exposto e gerando o mal estar necessário para a reflexão e a mudança. O invisível está se apresentando de forma cada vez mais enfática.
Bituca usa sua música como plataforma de visibilidade para questões sociais – racismo, fome. Alimenta nossa alma com música e também alimenta quem passa fome através da arrecadação de doações.
O psicanalista usa o seu saber, sua sensibilidade, sua escuta. O analista reconhece em seu paciente um sujeito de desejos, de dores, de sonhos. Como podemos pensar a função do psicanalista na comunidade e seu papel social, garantindo um olhar de afirmação da subjetividade e reconhecimento das dores e possibilidades de todas as pessoas?
A inserção na comunidade para além dos divãs, possibilita uma sensibilidade diferenciada ao analista, que poderá compreender a realidade cultural e os impactos no psiquismo dos sujeitos.
Já não é possível calar-se, fechar os olhos, silenciar as discussões. As manifestações nos alcançaram, como é próprio delas fazer! É desejo de todo sujeito poder se reconhecer e ser reconhecido através do olhar do outro.
O desejo, entretanto, se sustenta no corpo que urge por satisfação das necessidades básicas. O Real se impõe ao simbólico. O psicanalista cidadão está, cada dia mais, sendo convocado a atuar seu saber fora da clínica; e assim, entrar em contato com os impactos objetivos da desigualdade social, dos quais não pode se abster. Pode e deve, também, atuar de forma objetiva para combater a fome, a miséria, a desigualdade. É imperativo que o corpo se alimente, para que a mente trabalhe. O psicanalista, assim como essa gente sofrida que habita as periferias desse país continental, “possui a estranha mania de ter fé na vida”.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
Imagem: Retirantes, Cândido Portinari (1944)
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Os ensaios do OP são postados no site da Febrapsi. Clique no link abaixo: